Ao acompanharmos, diacronicamente, o desenvolvimento de algumas ideias no campo da Linguística, percebemos uma importância maior, paulatinamente, atribuída à enunciação. Conforme a reflexão sobre a natureza e o funcionamento semântico foi ocorrendo e se problematizando, o espaço dedicado ao pensamento da cena enunciativa foi ganhando consistência. Em Saussure, por exemplo, na reflexão sobre o signo linguístico, não há nada dedicado à enunciação. Em Hjelmslev, amplia-se o estudo do sentido para o nível do texto, por meio da função semiótica, mas sem lugar, ainda, para a discussão sobre a instância do enunciar. Quando chegamos, enfim, à Semiótica – em especial, a Tensiva – a enunciação começa a ser investigada como elemento fundamental na elaboração do sentido. Isso será observado, também, nas reflexões sobre o posicionamento discursivo das enunciações dentro da Análise do Discurso de linha francesa. A partir desse itinerário, entendemos que o pensamento sobre a ficção romanesca não pode se furtar à consideração das cenas enunciativas, dado que ela é um dos elementos fundantes não só da diegese, mas, também, do diálogo que esta estabelece com a vida social. A enunciação não deve se limitar ao estudo do narrador, dado que este é somente uma das suas manifestações no discurso do narrativa. Há toda uma arquitetura discursiva e dialógica (enunciador, narrador e interlocutor com seus respectivos receptores) que constitui a ficção. Inclusive, é tal especificidade que permite uma remissão às memórias que possibilitam a escritura da obra. Pensando que existe um interdiscurso, ele se manifesta não só enquanto memória a que o presente da enunciação recorre sobre o já dito, mas também como fundamento que permite que haja enunciação. Inclusive, não só a construção do discurso ficcional romanesco depende disso, como também a sua interpretação. Valendo-se disso, o romance contemporâneo – no caso deste estudo, especialmente, o de Saramago – estabelece um funcionamento narrativo peculiar no que toca a enunciação em sua remissão incessante à memória. A elaboração do sentido processa-se de maneira dinâmica, o que significa que a escritura ocorrida no presente da enunciação, da narração e da interlocução não completa, mas suplementa toda a memória do já-dito. Sendo assim, a metaficção historiográfica trava um contato discursivo com o passado de maneira a o desestabilizar, revelando a precariedade da memória e do “realismo do sentido”. Dessa perspectiva, os gêneros sexuais poderão ser relidos de maneira a se (re)considerar a possibilidade de uma identidade estável em categorias. Mais que isso: o funcionamento do gênero sexual mimetiza o do gênero discursivo da ficção romanesca por meio do dialogismo e da polifonia necessários para sua constituição, bem como pelo uso que pode fazer da memória como elemento subversivo da sua existência discursiva. História do cerco de Lisboa, portanto, por meio do contato tenso com a memória histórica, problematiza e desconstrói o funcionamento dos discursos que proporcionam a existência de qualquer ideia de vida ou identidade. Assim, uma nova cena de enunciação dos gêneros sexuais ganha possibilidade do dizer no romance contemporâneo.
Palavras-chave: ENUNCIAÇÃO, MEMÓRIA, GÊNERO SEXUAL, JOSÉ SARAMAGO