Nossa proposta é ler um haicai de Paulo Leminski – “Nu como um grego / ouço um músico grego / e me desagrego” (La vie en close, 1991, p. 151) – pondo-se à escuta de sua equivocidade, sobretudo aquela que ressoa a partir das diferentes expectativas em torno da pronúncia da sílaba tônica na rima final, vocalizada seja em acordo com os hábitos da linguagem cotidiana (|e| aberto, desagrégo), seja em acordo com as preferências da convenção poética (|e| fechado, desagrêgo). Nesse conflito entre o convencional e o habitual, o poema – “esse sempre ressuscitado atrito entre dois (ou mais) códigos” (Anseios Crípticos, 1986, p. 100) – expõe sua implicação em diferentes sistemas de valor e redes significantes, restitui ao signo sua virtualidade, efetua sua sobredeterminação (cf. Patrice Maniglier, “Surdétermination et duplicité des signes de Saussurre à Freud”, 2005, p. 158-159), isso não só para abri-lo a um número infinito de interpretações, mas também para conduzir cada interpretação, cada leitura, à sua infinitude e inacabamento singular (ibid, p. 152). Exposta em seus limiares, tal leitura passa a ter lugar a partir de uma brecha no contínuo do sentido, ponto de vibração que, segundo Jean-Luc Nancy, não delimita mais a posição do sujeito com predicados e “necessidade de ser reconhecido para se reconhecer” (La communauté desouvrée, 1986, p. 207), mas retoma a escritura, nela reinscreve seu corpo e ex-creve suas dobras, sua pele, “lá onde há ao mesmo tempo dentro e fora, nem dentro, nem fora” (ibid, p. 224; cf. id, “L’excrit”, 2013, p. 312-320). Nessa leitura – em contágio e ressonância com o ato de escrita, reenunciando seus tons, reencenando seus gestos – o haicai de Leminski deixa de ser um poema sobre um corpo nu, ou sobre os dilemas da trajetória poética do escritor (com suas idas e vindas entre música popular e herança concretista) ou mesmo sobre os cruzamentos intricados entre o visual e o sonoro. Por certo, tais elementos estão aí, mas não como referentes externos, supostos beneficiários de uma relaxada e caprichosa retórica construída pela forma, conjurada para suturar as dores de um corpo que se guardaria à distância, aquém da desagregação final. Muito pelo contrário, é toda tentativa de ler e apreender desse modo o haicai leminskiano que ficaria aquém de seu corpo equívoco, infinito, “inachevé et inachevant” (id, 1986, p. 159), corpo em que o nu (grego, visual-concreto ou libertário-contracultural), a música (negra, contraposta ou convergente à plástica nudez helena) e a desagregação (como liquefação de heterogêneos ou síntese disjuntiva em que eles mútua, sutilmente se sobredeterminam) partilham sua diferenciação recíproca. Seguindo o movimento dessa diferenciação, ao longo de seus deslizes contínuos entre o habitual e o convencional, o natural e o positivo, nossa leitura pretende evocar o kairos político da elaboração poética leminskiana, seu modo específico de desoperar discursos com pretensão à esquematização unívoca de mundos (ibid., p. 195), em meio ao período da redemocratização brasileira dos anos 1980, evocação que, por sua vez, certamente também diferirá nossa implicação nos problemas poético-políticos do momento.
Palavras-chave: PAULO LEMINSKI, POESIA CONTEMPORÂNEA, EQUIVOCIDADE E SOBREDETERMINAÇÃO, CORPO E LINGUAGEM