Se os acontecimentos de Canudos foram narrados por Euclides da Cunha no célebre Os Sertões, pouca coisa se produziu na literatura brasileira sobre a guerrilha do Araguaia. Este fato catastrófico, incrustado como uma ferida aberta na história da época da ditadura civil-militar brasileira, mantém-se um tanto quanto oculto, como se a imensidão da floresta Amazônica pudesse, por ela mesma, encobrir, com sua vegetação, toda a história de um massacre de militantes políticos efetuado pelo exército brasileiro. No conto “Trevas no Paraíso”, do livro Trevas no paraíso – Histórias de amor e guerra nos anos de chumbo, de Luiz Fernando Emediato, o contexto de repressão à guerrilha do Araguaia é construído pelo olhar de um narrador que segue com seu pai, um militante político, numa viagem desde o interior de Minas Gerais até o coração da guerrilha na floresta Amazônica. Nessa jornada, resgatada pela memória do menino que narra, ele se depara com fragmentos de uma realidade social e histórica que vê e não compreende bem, pois desconhece o real objetivo da viagem como também a própria identidade do pai. O olhar do narrador e as outras vozes que aparecem no conto, quase sempre em discurso direto, abrem a possibilidade de dizer pela ficção, em inúmeras vezes simulando a estrutura de depoimentos, o que foi encoberto nas narrativas oficiais sobre a guerrilha. O narrador não interpreta o que vê, apenas deixa fluir a memória de sua jornada com o pai. Assim, o recurso da viagem e as estórias que surgem através dessa estratégia narrativa estruturam o conto. “Trevas no Paraíso” torna-se a reconstituição, tanto como depoimento quanto memória, de uma história traumática do filho de um militante da guerrilha que, usando o disfarce de pai, vai voluntariamente ao encontro da morte. O conto recobre o contexto histórico dos momentos finais da ação de extermínio da guerrilha pela ditadura civil-militar. A história afetiva entre pai e filho é relembrada pelo narrador em meio à violência. Assim, o conto captura o real, através da citação de passagens históricas retrabalhadas pela narrativa. Por intermédio da ficção, os olhos do menino são emprestados ao leitor, resgatando, por meio de sua memória da viagem todas as trevas advindas da ferocidade da ação militar contra os participantes da guerrilha do Araguaia. O isolamento da população, a miséria social, o trabalho escravo, a destruição das populações indígenas, a prostituição infantil são resgatadas pela memória do narrador nos momentos finais de sua viagem com o pai pela rodovia Transamazônica, um símbolo do progresso, tão valorizado pela ideologia dos generais, que dispersa todas as ruínas em suas margens. A memória de um massacre vem à tona iluminando as trevas do paraíso verde, amarelo, branco, azul-anil da ditatura civil- militar brasileira.
Palavras-chave: NARRADOR INFANTIL, MEMÓRIA, GUERRILHA DO ARAGUAIA, DITADURA CIVIL-MILITAR