ISADORA DE ARAÚJO PONTES, JOVITA MARIA GERHEIM NORONHA
As autobiografias de Annie Ernaux têm como foco, a exceção Les années [Os anos] (2008), fragmentos de sua vida e partem de um distanciamento que não impede a autora de explorar as emoções envolvidas, ao mesmo tempo em que é capaz de chamar atenção para os mecanismos de dominação, como a condição das mulheres. Seu projeto escritural é em si revolucionário, na medida em que se empenha em narrar sua “vida em ato”, revelando uma realidade que não está prevista nas leis e códigos, como propõe Antônio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere (2001), uma realidade marcada pela dominação, para que seja possível agir no mundo e transformá-la. Sua escrita funciona como um ato político, que, muitas vezes, busca se afastar da sofisticação da arte para que possa aproximar-se o máximo possível das experiências vividas pela autora, fruto de um meio dominado social e intelectualmente. A partir dessas considerações, o trabalho em questão pretende apresentar uma análise crítica da obra L’evénement [O acontecimento] (2000) de Annie Ernaux, tendo em vista a hipótese de que o relato da experiência do aborto clandestino realizado na França em 1964 funciona, na obra, como uma forma de tornar comunicável a violência e o trauma sofridos, reinscrevendo a experiência dentro de uma dimensão política e social. O aborto é um tema ainda controverso e tabu, cuja proibição está intimamente ligada aos processos de dominação e violência de gênero. O próprio ato da rejeição da gravidez pela mulher ainda é considerado um comportamento que foge à natureza, ao normal, ignorando-se que essa norma também se trata de uma produção artificial das relações de poder. Além disso, uma narrativa referencial sobre um aborto ilegal é, igualmente, uma narrativa sobre um crime cometido. Expor as condições dessa experiência, vivida de forma clandestina por um indivíduo pertencente a uma classe social dominada, destacando as questões sociais envolvidas, confere uma função política para a narrativa. Em L’événement [O acontecimento] (2000), Ernaux busca não só relatar a experiência, mas aproximar-se da violência sofrida em um procedimento inseguro que quase leva a autora-narradora à morte. Trata-se de uma narrativa sobre um tema tabu e abjeto, bem como sobre a experiência de uma violência traumática. Dessa forma, a partir desses três aspectos nos propomos a refletir sobre o caráter indizível de sua escrita. Essa “escrita do indizível” é compreendida, em nossa análise, como uma escrita que busca transmitir aquilo que a linguagem falha em traduzir, procurando alcançar uma experiência dos limites morais, físicos e psicológicos, assim como transgredi-los. Referências: ERNAUX, Annie. L’événement. Paris: Gallimard, 2000. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. SIMONET-TENANT, Françoise. “’A63’ ou la gênese de l’’épreuve absolue’”, in: THUMEREL, Frabrice (org.). Annie Ernaux, une oeuvre de l"entre-deux. Arras : Artois presses université, 2004.
Palavras-chave: ANNIE ERNAUX, ESCRITAS DE SI, ABORTO, TRAUMA