Rosa Maria Martelo, no ensaio Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961 (2007) localiza nessa década, a de 1960, um momento de “viragem” na poesia portuguesa, sugestão semelhante à de Fredric Jameson em relação à mesma época, momento de, segundo o crítico norte-americano, “ruptura” na consolidação de novas estéticas que viriam a se opor àquelas solidificadas pelo alto modernismo. Martelo se vale da ideia de uma “literatura menor”, postulada por Deleuze & Guattari (2014 [1975]), para marcar um momento de “conscientização de que a poesia só tem sentido se a máquina de expressão preceder e arrastar os conteúdos”. A questão que a crítica portuguesa coloca como epílogo de sua reflexão no ensaio citado é aquela acenada em torno do topo histórico, encarregada de equacionar o impasse que resta após Auschwitz: como esquecer tais horrores protagonizados pelo homem no século XX. Mas também, como recordá-los? O paradoxo do testemunho/da memória tem na obra de Giorgio Agramben, O que resta de Auschiwtz, interessante reflexão sobre a tomada da palavra por aquele que não pode falar, e o nada a dizer daquele que possui a palavra, na detecção daquilo que “resta”: o muçulmano. Uma questão semelhante é formulada sob o ponto de vista estético: Como vir depois do Modernismo e instaurar o Novo, sem deixar de recordar que o Novo é já precisamente uma tradição revisitada? Octavio Paz, em brilhante oximoro, ao caracterizar a estética moderna como "a tradição da ruptura", já havia chamado a atenção para isso em seus artigos, quando entende o moderno como uma tradição marcada por "interrupções" que assinalam, a cada ruptura, um começo, e, assim, o que se denomina “modernidade” seria o resultado de rupturas em série, capazes de fundar uma tradição. Tais problemáticas teóricas são acolhidas pelas obras de dois ficcionistas contemporâneos, o português Gonçalo M. Tavares e o brasileiro Amilcar Bettega: nelas – Uma menina está perdida no seu século à procura do pai (2015) e Barreira (2013), respectivamente – o desejo de compreender a história, íntima e social, sedimenta os caminhos tortuosos atravessados pelos protagonistas numa busca, sobretudo, de si mesmos, na tentativa de romper a interdição da língua, suportar a inospitalidade das paisagens e compreender os mapas cujas coordenadas oscilam entre passado e futuro. Nesse lugar de problematização da memória constituído pela leitura comparada dos romances mencionados – mobilizando o aporte teórico sugerido –, os desafios poéticos de Tavares e Bettega se configuram, em seus contatos com as marcas do tempo histórico (delineado no corpo social/coletivo) e, simultaneamente, em um tempo definitivo e presente (marcado na individualidade de cada personagem), isto é, em um gerúndio nos quais a linguagem se torna errância, performance e lembrança.
Palavras-chave: GONÇALO M. TAVARES, AMILCAR BETTEGA, MEMÓRIA, HISTÓRIA