Os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, realizados entre 2012 e 2014, juntamente com o marco histórico dos 50 anos do golpe civil-militar de 1964 — completados no ano de encerramento das investigações da comissão —, suscitaram diversas reflexões sobre a maneira como o Brasil confronta os traumas deixados pelo período ditatorial. Entre esses traumas, estão os sofrimentos individuais e familiares que persistem ao longo de décadas em razão da ausência de informações a respeito de episódios e de circunstâncias metaforicamente soterradas pelo regime, ao passo que os corpos de centenas de mortos, assassinados pelo Estado ou com sua conivência, permanecem sem sepultura. Três casos particulares, citados pela Comissão Nacional da Verdade, encontraram também na literatura uma forma de lidar com a dor e o impedimento de um luto que se mantém incompleto: K.: Relato de uma busca, de B. Kucinski, lançado em 2011; Antes do passado: O silêncio que vem do Araguaia, de Liniane Haag Brum, publicado em 2012; e Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva, datado de 2015. No primeiro, B. Kucinski, numa narrativa que mistura memória e elementos ficcionais, relata a procura de seu pai, o K. do título, pelo corpo da filha Ana Rosa Kucinski, militante da Aliança Nacional Libertadora sequestrada, presa e assassinada pelas forças da repressão. No segundo, Liniane Haag Brum tenta refazer os passos de seu tio, Cilon Cunha Brum, no Araguaia e desvendar as circunstâncias da morte do guerrilheiro, assassinado pelas forças armadas brasileiras. No terceiro, Marcelo Rubens Paiva reconstrói suas recordações acerca da prisão, assassinato e desaparecimento do pai, o ex-deputado Rubens Paiva, ao mesmo tempo em que discute a temática da memória a partir do sofrimento provocado pelo estado atual da mãe, Eunice Paiva, vítima do Mal de Alzheimer. A doença, aliás, já havia sido usada como metáfora por Kucinski, no prefácio de K., ao expor o ‘‘Alzheimer coletivo’’ que vitima a sociedade brasileira em relação aos crimes cometidos pela ditadura. É sob o ponto de vista da relação entre memória, história e esquecimento, segundo os conceitos de Paul Ricœur, e das discussões sobre memória individual, conforme Henri Bergson, e memória coletiva, de acordo com Maurice Halbwachs, que se pretende traçar uma análise comparativa das três narrativas, que têm em comum o fato de os corpos das vítimas jamais terem sido entregues às famílias. A proposta é abordar a transmissão familiar e intergeracional do trauma provocado pelo desaparecimento e a maneira como a literatura escrita por familiares de desaparecidos políticos inscreve-se, nesses casos, como uma espécie de epitáfio para lápides ainda hoje inexistentes.