LICIA REBELO DE OLIVEIRA MATOS, ÂNGELA BEATRIZ DE CARVALHO FARIA
A importância da tradição greco-romana no mundo moderno ultrapassa influências diretas, como as que podemos observar nas línguas e nas artes. As narrativas clássicas se repetem com frequência não só na literatura, mas também na história; é o que mostra a escritora portuguesa Teolinda Gersão, em sua obra A cidade de Ulisses (2011), a respeito da odisseia – não propriamente o poema, mas a jornada de Odisseu – e sua semelhança à trajetória de Portugal ao longo de vários séculos. Odisseu/Ulisses, herói que dá nome à segunda epopeia homérica, é, quiçá, o mais famoso viajante da literatura ocidental. A árdua travessia do guerreiro de Troia a Ítaca representa não apenas uma viagem de provação e autoconhecimento, mas o desenho nítido de uma estrutura social que divide homens e mulheres em funções socioeconômicas e espaços de circulação distintos. Em outras palavras, enquanto Odisseu retrata o elemento externo, que sai em busca de conquistas e histórias, traçando uma ampla rota de experiências a céu e mar aberto, Penélope permanece no espaço interno doméstico, compondo o centro de equilíbrio do lar a que o marido anseia por regressar, com sua rota concentrada entre paredes e desfiada na manta que tece incessantemente. De forma semelhante, segundo a leitura de Gersão, ou melhor, do narrador e protagonista de seu livro, a nação lusitana viveu, século após século, períodos de saída de homens para o mar, à custa de guerras, conquistas, exploração de outros territórios e emigrações com variadas finalidades; a notável ausência masculina no seio familiar lusitano tornou-se tema recorrente na literatura local, tendo sido cantada por Luís de Camões, Fernando Pessoa, Camilo Castelo Branco, entre outros numerosos poetas e prosadores. Portugal cumpre, portanto, uma espécie de representação histórica do mito de Odisseu, com diversas gerações de mulheres que, na ausência dos maridos, acabaram por ser responsáveis pela administração das casas e criação dos filhos – não nos esqueçamos de Telêmaco, que, recém-nascido quando da partida do pai para Troia, conhece-o apenas pelas narrativas da família, tendo construído em seu imaginário um pai-sonho em iminente retorno. Além disso, numa perspectiva macro, grande participação tiveram as mulheres lusitanas na construção da nação, formando uma sociedade a que não é errado classificar como matriarcal. Mas a ligação entre Grécia, ou, mais especificamente, entre o herói da Odisseia e Portugal não se esgota na história lusitana. O grande tema de A cidade de Ulisses recai sobre a teoria de que o rei de Ítaca teria fundado Lisboa durante sua viagem de retorno após a guerra, lenda que muito se resguarda na origem do nome da cidade, Olisipo, e sua semelhança ao nome Ulisses. Investigando, enfim, a influência do antigo no moderno e do mito na história, Teolinda Gersão faz uma sensível leitura do que se passou no caminho de Troia a Ítaca, transpondo para a realidade de seu país esse conto homérico fundador de todos nós.