Em seu livro sobre escritores de fala alemã no Brasil durante a época do nazismo, Izabela Maria Furtado Kestler levanta a ousada afirmação de que em nenhum outro país escritores exilados se ocuparam com tanta frequência do país que os abrigou. A afirmação é ousada em uma realidade em que a literatura foi um dos principais instrumentos de fixação de uma identidade dita nacional, em uma relação paradoxal de doação e rejeição a elementos estrangeiros. Em que medida obras e impressões de estrangeiros que, sobretudo no século XX, atuaram e produziram no e sobre o Brasil nos permitem formar e desestruturar nossas próprias noções sobre a cultura nacional? Este trabalho pretende refletir sobre essas questões a partir da obra de dois contemporâneos no Brasil: Vilém Flusser e Elisabeth Bishop. Flusser e Bishop tiveram suas vidas profunda e contraditoriamente marcadas pelo período que passaram no Brasil, embora nada possa aproximar suas experiências. No que toca à escrita, percorrem caminhos opostos, no entanto, igualmente pautados pela liberdade. Flusser empreende aprendizado obstinado da língua, que lhe abre a inspiração para um tipo particular de escrita, a ensaística, baseada em autotraduções constantes; Bishop mostra total desinteresse ao português, que nunca aprende, mas to qual não consegue se furtar, seja pelo uso de diversas palavras em seus poemas, seja porque empreende diversas tentativas de traduções de escritos brasileiros para o inglês. Bishop toma a natureza brasileira como musa para sua poesia e mantém intensa correspondência na qual registra opiniões e impressões que pouco ousava abrir publicamente, mas nos 16 anos que aqui passa, parece estar no Brasil como em qualquer outro lugar. Socialmente perfeitamente inserida na elite carioca, permanece deslocada e distante. Estranhamente é fora do Brasil que se volta a ele e termina em qualquer lugar como se aqui estivesse. Flusser se engaja a tal ponto na cultura brasileira que se torna professor influente de toda uma geração de jovens, coeditor da Revista Brasileira de Filosofia e colunista de um dos principais jornais do país. Quando sai do país, passa 20 anos em silêncio tentando processar a experiência brasileira que define sua vida, sobretudo no sentido da desilusão de engajar-se em um lugar. Ambas as experiências redefinem relações com o tempo, a memória e a subjetividade, além da mais evidente, com o espaço. Atravessam todas essas dimensões, atravessando culturas e criando um entre-lugar que parece nunca ser estável. Ao mesmo tempo, essas experiências criam lugares de mediação da cultura brasileira alhures. Lugares alternativos e pessoais, é verdade, mas que não devem ser ignorados como peças importantes de compreensão e interpretação dessa cultura formada por tantos elementos estrangeiros e paradoxais, sob a imagem imperativa dos braços abertos.
Palavras-chave: VILÉM FLUSSER, ELISABETH BISHOP, ESCRITA, ESTRANGEIRO