Em Literatura de Fundación, texto escrito em 1961, Octavio Paz afirma que a América começou por ser uma ideia e, sob essa perspectiva, nossa literatura teria começado por ser uma ideia europeia muito antes de ter uma existência própria. Ao pensar, como Paz, na existência de um imaginário europeu sobre a Amazônia muito antes de sua descoberta, partimos do princípio de que é principalmente por meio de imagens, narrativas e relatos que o imaginário de um lugar é expresso. Esses elementos fornecem a compreensão de como são criadas e difundidas diferentes versões identitárias, bem como se perpetuam estereótipos e imagens definidoras da “autenticidade” dos lugares visitados. Mário de Andrade, ao escrever “Dois poemas acreanos” em 1925 (serão publicados apenas em 1927, em Clã do Jabuti), Minas Gerais havia sido o lugar mais distante de São Paulo para o qual ele tinha viajado. Com sua declarada “fome pelo Norte”, é apenas em maio de 1927 que ele embarca (numa viagem que dura até agosto do mesmo ano) com destino a uma região até então conhecida apenas de relatos e do “ouvir falar”. É assim que Macunaíma, já em sua segunda versão de escrita, segue na bagagem de seu “pensamenteador” rumo à Amazônia onde nasceu, nos mitos narrados pelos indígenas e registrados pelo etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg na obra Vom Roroima zum Orinoco. O “pensar por tabela”, exercício praticado por Mário para entender a priori um Brasil tão disperso geograficamente, dilui-se em contato com a realidade e, para além de reforçar e afirmar imagens e cenários já manipulados sob a égide do exótico, ele desfaz a separação territorial em Macunaíma, já que insistir no regionalismo seria dar ênfase às diferenciações e ao exótico, o que seria danoso e “desintegrante da ideia de nação e sobre este ponto muito prejudicial pro Brasil já tão separado”, como afirma em carta a Câmara Cascudo. É também para Cascudo que ele confessa seu medo de “ficar regionalista” ou de se “exotizar pro resto do Brasil”. Ao entender Macunaíma não como “expressão”, mas como “sintoma” da cultura brasileira (como justifica no 2º prefácio que escreve para o livro), Mário o destitui de um caráter, tornando-o plural, uma espécie de palimpsesto, no sentido de que as diferenças agregam. Essas diferenças, percebidas in loco, adquirem materialidade em suas duas viagens ao norte e nordeste, cujas notas publicadas em jornais e revistas com as impressões e relatos da viagem são trazidas à luz em conjunto 31 anos depois da morte do escritor, no livro O turista aprendiz (1976), organizado pela professora e pesquisadora Telê Ancona Lopez, do IEB/USP. É a Amazônia que Mário encontra em 1927, durante o engendramento e “possessão preparada” de seu Macunaíma ainda na mala, que lhe vale como ponto mais representativo das potencialidades de um Brasil projetado. Esta é, pois, a forma pela qual fomos imaginados antes mesmo de termos sido (também por Mário-Macunaíma) descobertos.
Palavras-chave: MÁRIO DE ANDRADE, MACUNAÍMA, IMAGINÁRIO, POSSESSÃO PREPARADA