Livro de João Cezar de Castro Rocha demonstra influência de Shakespeare na América Latina

Castro Rocha: presidente da Abralic e autor de “Culturas shakespearianas” - ANTONIO

POR LEONARDO CAZES

RIO — No início deste mês, o Congresso Internacional da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada) levou, durante uma semana, 3 mil pessoas para as salas e os corredores de uma Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em crise. Sob a liderança de João Cezar Castro Rocha, professor da Uerj e presidente da Abralic, o evento foi um marco na defesa da instituição que sofre com a falta de recursos. Castro Rocha, que lança agora o livro “Culturas shakespearianas” (É Realizações), fala, em entrevista ao GLOBO, sobre a importância do congresso para a Uerj e como o seu conceito de “culturas shakesperianas” se articula com a situação da universidade hoje.

O que são essas “culturas shakespearianas”?

Culturas shakespearianas são aquelas que radicalizam um fenômeno que a literatura, desde Homero e antes de Freud, já nos ensinou: nós sempre nos vemos com mais clareza no olhar dos outros. Minha hipótese é radicalizar essa intuição. Culturas shakespearianas seriam aquelas que formam sua autoimagem, sobretudo, a partir do olhar do Outro, geralmente um estrangeiro a quem atribuímos uma autoridade pelo simples fato de ser estrangeiro. Durante todo o século XIX e parte do XX, foi o francês. A partir da Segunda Guerra, cada vez mais o norte-americano. Em geral, essas culturas são de passado colonial recente e/ou  estão no polo inferior de uma relação assimétrica. Há uns tipos absolutamente medíocres que só discutimos porque escrevem em inglês. Jonathan Franzen é um escritor medíocre. Não é mau romancista, mas é medíocre no sentido próprio do termo. Você escuta o sujeito falar, se você não dormir em cinco minutos, você é um herói da resistência. Um tédio, monossilábico, monocórdico, que é mais ou menos como os romances que ele escreve. Se em vez de Jonathan Franzen, ele se chamasse João Francisco, nem Prêmio Jabuti ganhava.

Você diz que Shakespeare foi o primeiro autor latino-americano. Por quê?

Em 1898 houve um acontecimento fundamental para todo o continente: a guerra entre Estados Unidos e Espanha por Cuba, então a última colônia espanhola da América Latina. Muitos intelectuais reagiram de forma violenta e se apropriaram de uma peça de Shakespeare, “A tempestade”. Na peça, Próspero é o mágico, Ariel é o espírito e Calibã é o corpo. Tornou-se comum para os intelectuais latino-americanos definir a América Latina como Ariel e os Estados Unidos como Calibã, puro corpo, puro pragmatismo. Durante o século XX, “A tempestade” foi fundamental para pensar a própria cultura latino-americana. O que está em jogo aqui? O primeiro escritor latino-americano da História é William Shakespeare. Se você é um escritor latino-americano no século XIX e decide escrever um romance, a primeira coisa a fazer é conhecer as tradições europeias. A sua voz é definida pela apropriação das dicções alheias.

É possível pensar a atual crise da Uerj a partir desse conceito que você propõe?

A maior parte da crítica cultural brasileira deriva apenas a consequência solar deste caráter shakespeariano, que é a grande capacidade de assimilação de tradições diversas. O exemplo mais bem acabado disso é a antropofagia de Oswald de Andrade. Mas há um lado sombrio, que chamo de “outro Outro”. Esse “outro Outro” é o menino do subúrbio que estuda na Uerj, faz mestrado e passa a madrugada numa cabine telefônica para ajudar a família. A Uerj é parte desse “outro Outro”. Deste lugar, nós não assimilamos nada. O problema estrutural do Brasil é que a elite, ou a classe que não é tão desfavorecida, não se considera, como diria Shakespeare, “a mesma coisa do que é feito o povo”. São de outra matéria, outra natureza. Isso é muito chocante. O lado solar da nossa cultura é a antropofagia oswaldiana. O lado sombrio são as nossas cidades, o fato dos nossos índices de violência serem piores do que o de países em guerra. Não é possível acharmos isso natural. Se eu estiver certo, pois se trata de uma hipótese, essa é uma proposta de quadro teórico para pensar essas culturas em situações de assimetria, cada vez mais graves no mundo contemporâneo, mas também uma forma de pensar a estrutura profunda das sociedades latino-americanas.

Por dois anos, você trouxe o congresso da Abralic para uma Uerj em profunda crise. Qual  o balanço que você faz?

O que tentamos trazer para a Abralic faz parte de uma análise da situação contemporânea. A universidade pública no Brasil não é mais um dado garantido. Se, no passado, havia um consenso sobre a centralidade da universidade pública na cultura brasileira, hoje esse consenso não existe mais. Amanhã, se o ministro da Educação propor acabar com as universidades, não será um escândalo, mas uma sequência lógica de todo retrocesso que vivemos. A universidade pública só vai sobreviver no Brasil se fizer o que sempre deveria ter feito. É preciso socializar o seu conhecimento e trazer a sociedade para dentro de si, sem abrir mão do rigor e do conhecimento que nós produzimos. Nós estávamos há quatro meses sem receber. Nossa aposta era deixar claro para todos a distância entre a potência da universidade pública e os limites estruturais do jogo político brasileiro. Mesmo com todo dinheiro roubado, eles (os políticos do PMDB) não seriam capazes de fazer o que fizemos sem receber salário.

Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/livro-de-joao-cezar-de-castro-rocha-demonstra-i nfluencia-de-shakespeare-na-america-latina-21749511

 

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