A “Carta” de 6 de setembro de 1770, da escrava Esperança Garcia, a primeira citação acima, foi endereçada ao Governador da Província do Piauí (MOTT, 1985, 2010), uma “inusitada reclamação” (MOURA, 2004) por se tratar de uma escrava que se dirige à principal autoridade do Piauí colonial setecentista. A “Carta” é certamente um dos registros escritos mais antigos da escravidão no Brasil, escrito pelo próprio escravo negro, no nosso caso uma mulher negra e cativa, Esperança Garcia, o que confere à narrativa epistolar citada acima o status de uma escritura da gênese literária afro-brasileira. A narradora se apropria do antigo modelo de petição da segunda metade do século XVIII, para assentar nesse território simbólico da escrita as vozes da narrativa autobiográfica ou da crônica pessoal e comunitária do sujeito negro num espaço inóspito, a escravidão. Essas vozes falam da dor humana, da luta e do desespero de uma mulher escravizada, que fala em nome de si mesma, dos filhos, do marido e dos parceiros do cativeiro, assumindo o lugar de porta-voz do seu grupo. O relato escrito por Esperança Garcia envolve a uma rede de acusações e denúncias o Administrador das fazendas de gado da Coroa de Portugal no Piauí. Esse tipo de experiência é também recorrente nos relatos de experiência dos escravos ou slavenarratives nos Estados Unidos, cujos autores escreveram e publicaram narrativas autobiográficas, contando fatos da sua própria vida de escravo e da vida dos colegas de infortúnio, nos séculos XVIII e XIX (MORRISON, 1987), como também em Cuba e noutros países das Américas onde o africano fora escravizado.