Ele quer que eu ande bem vestida para lhe fazer honra, pensava: faço parte da sua
representação, como o automóvel e a pérola na gravata. Não faz mal que eu me sinta infeliz,
porque, isso, ninguém vê””. O trecho vem entre dupla aspas porque as aspas na prosa de ficção
de Lucia Miguel Pereira e mais especificamente no romance Em surdina (1933) do qual essa
passagem faz parte, são mais um dos elementos que colaboram na modulação das vozes, não
apenas femininas, presentes nessa obra. As soluções na forma de uma terceira pessoa seletiva são
facilmente relacionáveis com outros romances icônicos publicados no mesmo período, mas o
conteúdo destoa mesmo do tipo de crítica social que o grande Romance de 30 conduzia. Esse
desafinar foi tomado por uma parte da crítica como algo negativo, que relegou a obra de ficção
de Lúcia Miguel Pereira para um patamar mais baixo que a sua obra crítica, bastante respeitada
desde o início de sua carreira. A prosa de ficção de autoria de Lucia expunha um nervo custoso
de ser aceito, os conflitos e as contradições internas de personagens femininas, seus limites de
visão e atuação, seus preconceitos desde o ponto de vista da mulher casada, em Maria Luísa, da
menina de família rica em Em Surdina, da de família pobre em Amanhecer e no grande Cabra
cega. Personagens e narradoras vivem o drama da dificuldade em assumir os papeis a elas
relegados. Nelas há algo que resiste e que elas mesmas aprendem a não negar. Uma moça que
tem força para, na sociedade carioca da década de 1930, negar três pedidos de casamento, com
supostos bons partidos, mas que ainda não consegue se imaginar vivendo longe da casa do pai
mostra a dificuldade hercúlea de cada passo tomado na direção da desfetichização de si mesmas
e de sua realidade “administrada” pela família e pelos bons costumes. A questão que vamos
elaborar nesse trabalho pensa o lugar e a condição da mulher na sociedade tomados no profundo
realismo da narração das situações em que estão a personagem, que aproxima as conexões da vida
cotidiana. Realismo entendido aqui como pensa o conceito György Lúkacs, a partir de uma
estética marxista, e também levaremos em conta algumas intervenções do feminismo, com autoras
contemporâneas brasileiras, como Lourdes Bandeira e Rita Terezinha Schmidt, mas sempre de
dentro da problemática particular levantada pelas situações da vida da personagem Cecília. A
investigação proposta nesta comunicação faz parte de uma entre as pesquisas em andamento na
Universidade de Brasília, no grupo de pesquisa que lidero, Literatura, Estética e Revolução
(LER), cadastrado no DGP-CNPq desde 2012.
Palavras-chave: Em Surdina, Lucia Miguel Pereira, Feminismo, Lukács, Realismo