Pretendo, nesta comunicação, ler o romance "Um, nenhum e cem mil", de Luigi Pirandello, publicado em 1926, tendo como foco de abordagem as noções de corpo e de performance. O romance acompanha o personagem Vitangelo Moscarda, que, depois de ver um defeito em seu nariz no espelho, não se reconhece, descobrindo-se um sujeito fragmentado e não coeso. No livro, o corpo assume papel central nas ponderações de Moscarda sobre a identidade. O que deflagra a sua “loucura” – como ele a chama – é o estranhamento de seu corpo. O personagem decompõe a unidade do sujeito, transformando-o também em nenhum e cem mil. Tal movimento dialoga com a proposta do simpósio “Performar a literatura”, não apenas em função da temática do romance, mas porque a pluralidade ou mesmo informidade se manifesta no corpo da escrita, fragmentário e informe. O livro ora se utiliza da narração, ensaiando estilos diferentes, como o romance policial, ora se utiliza de tópicos esquematizados. A própria divisão do romance em “livros” (oito, no total) assume a fragmentação como proposta formal, negando até na composição do(s) livro(s) a unidade singular. Outra questão que pretendo trabalhar é a presença do leitor no corpo do texto, perceptível no uso constante da segunda pessoa gramatical. O narrador chega a performar uma cena de toque físico com o leitor: “Vamos, vamos, esperam que eu lhes dê a mão, que os ajude a levantar? Mas vocês são gordos. Esperem: nas costas ficaram alguns fiapos de grama... Pronto, vamos embora.” Em "Um, nenhum e cem mil", o leitor não é colocado somente como interlocutor linguístico, mas como corpo que interage com o corpo do narrador/personagem. A ideia de performance também pode ser lida em outro momento do romance, no qual Moscarda, ao se deparar com as visões limitantes dos outros sobre ele, se propõe a decompô-las ativamente. Isso pode ser entendido como uma forma performática de recusa das visões do outro. Judith Butler discute a ideia da performance como produção de identidade; no romance de Pirandello, no entanto, a performance se dá como um atravessamento das ações do personagem, com intuito de desconstrução de uma identidade. Considero ainda que, nas duas últimas páginas, a decomposição performática dá lugar à vontade do protagonista de se outrar – proposta de Fernando Pessoa mencionada no resumo desse simpósio. Na cena em questão, o outro é a paisagem: Moscarda observa a vista campestre e diz se tornar árvore. Na continuação, chega a afirmar que será “amanhã, livro ou vento”. A partir dessa afirmativa, proponho uma leitura metalinguística, pois o narrador se dá conta da materialidade do personagem/livro. Tal leitura é corroborada pelo título “Sem conclusão” da seção 4 do Livro VIII, em que esse trecho do romance se encontra. Penso que a falta de conclusão diz respeito tanto ao personagem/narrador quanto ao livro. Ou, ainda, ao personagem/livro de “amanhã”.
Palavras-chave: UM, NENHUM E CEM MIL, DE PIRANDELLO, CORPO, PERFORMANCE