Nelson Rodrigues debutou no teatro em 1941 com a peça “A mulher sem pecado”. O drama conta a história de Olegário, um falso paralítico que se finge de aleijado para testar a fidelidade da esposa, Lídia. Na concepção do protagonista, uma mulher seria incapaz de amar e se manter fiel a um homem com quem não pudesse manter relações sexuais. Assim, ele submete sua senhora a diversas perseguições, a fim de perscrutar todos os seus passos e pensamentos. Muito já se comentou sobre o ciúme paranoico de Olegário que termina por conduzir Lídia à infidelidade. De tanto ser acusada de adúltera, ela acaba por cometer o adultério. O objetivo deste trabalho é, por sua vez, entender a obsessão do marido. Para tanto é lançado mão da teoria sobre o desejo mimético, de René Girard, presente, sobretudo, em “Mentira romântica e verdade romanesca”. Em linhas gerais, para Girard, um objeto se torna mais desejado quando aquele que deseja percebe que o objeto também é desejado por Outro. Ou, mais especificamente, um objeto só é desejado quando Outro também o deseja, pois nenhum desejo é gratuito: ele surge de uma admiração que o sujeito desejante nutre pelo Outro (ainda que velada ou violentamente negada). Esta é a base da estrutura triangular, formada por sujeito desejante, objeto e mediador (o Outro), e que se percebe em “A mulher sem pecado”. Na mediação interna girardiana, quando sujeito e mediador disputam diretamente o objeto é inevitável o conflito entre eles. Em “A mulher sem pecado” lidamos com uma mediação interna bastante singular, pois a disputa entre sujeito desejante e mediador, mais do que estabelecer uma luta entre eles, se transforma em agressão contra o próprio objeto (que já está de posse do desejante: Olegário é esposo de Lídia, mas teme perdê-la para qualquer outro homem), como se a este coubesse a culpa por se fazer desejar. O estudo credita esse comportamento a uma ambivalência no desejo do falso paralítico: a despeito do que professa, Olegário parece mesmo querer que Lídia seja desejada por outros homens, o que lhe conferiria o status de grande mediador, agora do desejo dos outros, e não mais de sujeito desejante. Ele, contudo, parece não suportar a carga do seu intento, por não se reconhecer como modelo ideal. Girard aponta essa autoconsciência de sujeito falho como característica do humano, razão pela qual estamos sempre nos mediando pelo Outro, que cremos possuir as características que desejamos. Ao final, Olegário será traído pelo seu motorista Umberto, que se apresenta como igualmente imponte para lograr o patrão e assim seduzir Lídia, que terminará por fugir com o empregado. O texto rodriguiano deixa transparecer que o chofer percebe a máscara de Olegário e instaura um jogo em que não possa ser considerado como mediador para poder roubar o objeto e se instaurar como novo ídolo.
Palavras-chave: NELSON RODRIGUES, A MULHER SEM PECADO, MIMETISMO, TRIANGULAÇÃO