Pensar a figura do narrador no contexto atual da teoria da literatura é buscar compreender a construção de uma autoridade ficcional que se confronta com forças críticas de desierarquização. Por ser a voz que leva ao leitor o conhecimento dos fatos, ele goza de posição privilegiada na sua organização e seleção - e, justamente por isso, paira sobre sua figura desconfiança nesse processo na crítica contemporânea, . Um dos principais textos para se pensá-lo é o seminal ensaio O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin (1994b). Em sua reflexão, o pensador alemão se debruça sobre diversos tópicos que constituem essa figura narrativa, buscando compreender suas vicissitudes na transição de um mundo tradicional dos antigos para um mundo moderno, moldado pela técnica e pela guerra. Esse estatuto do narrador clássico encontra-se muito distante do narrador da contemporaneidade. Esse paralelo foi realizado por Silviano Santiago em O narrador pós-moderno, em que o crítico brasileiro avança com as observações de Benjamin sobre o distanciamento entre narrador e experiência. Em seu texto, ele aponta inicialmente que, ao contrário do narrador clássico, que vivenciou determinada experiência, o narrador pós-moderno ? ou contemporâneo ? narra pois acostumou-se a observar sujeitos na vivência de tal experiência . Há um significativo distanciamento entre narrador e fato narrado, entre o oleiro e seu vaso, nas palavras de Benjamin, colocando em cena uma problemática que não estava no centro da discussão do narrador clássico: a linguagem. Em “A literatura impensável”, Jacques Rancière discute o “deslizamento histórico” da literatura em “passagem de um saber para uma arte”, para um repertório técnico. Como ele aponta, “no século XIX, essa palavra literatura, que designava um saber, passará a designar seu objeto”. Observa-se que, com o avançar da modernidade, a questão da linguagem passa ao plano central da literatura: não mais um meio, mas também um fim. Santiago é preciso ao apontar que “o narrador pós-moderno sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções da linguagem”; não por acaso, esta sai dos bastidores da obra para atuar no palco, defronte a seus leitores. Frente a isso tudo, é possível ainda falar em experiência e autoridade para o narrador contemporâneo? Essa comunicação busca analisar quais recursos uma obra literária atual tem a sua disposição frente às forças desierarquizantes. Para isso, propõe-se discutir essas escolhas narrativas na obra Reprodução, do escritor brasileiro Bernardo Carvalho, escolhido devido ao complexo jogo de forças narrativas que sua obra opera. Se há uma cisão entre esses elementos, o narrador contemporâneo precisa se readequar às relações entre experiência e linguagem. Agamben aponta, em Infância e história, “uma proposição rigorosa do problema da experiência deve, portanto, fatalmente deparar-se com o problema da linguagem”; portanto, nossa investigação deve observar como a literatura contemporânea articula esses dois elementos.