Ainda que não se reconheça a identidade nacional sem a formatação que o grande ensaísmo de 1930 conferiu ao país, é hora de atualizar as fontes eminentemente “culturalistas” de tal avaliação. A premência da matéria se dá pelo avançar da modernidade precária instalada, que sem dúvidas impõe configurações sociais e culturais mais complexas, das quais as velhas imagens dos “intérpretes do Brasil” não podem seguir dando conta. Não que a análise “culturalista” tenha perecido. Fortemente inspiradas nas dicotomias freyreanas e na ideologia da cordialidade, continua rendendo frutos controversos, como comprovam Roberto DaMatta (“Carnaval, malandros e heróis” – 1979) e mais recentemente, envolto no manto “científico” da análise quantitativa, Alberto Carlos Almeida (“A cabeça do brasileiro” – 2007). Entendemos, no entanto, que além da modernização brasileira extrapolar a fixação meramente imagética e, portanto, reducionista de sua identidade, tais ensaios ignoram a profissionalização da pesquisa universitária no Brasil, bem como da moderna sociologia que deriva com rigor de Florestan Fernandes (Cf. “A organização social dos tupinambá – 1947; “A integração do negro na sociedade de classes” – 1964; “A revolução burguesa no Brasil” – 1975 entre outros). Queremos contribuir com esse simpósio com intuito de agregar tal experiência sociológica “dura” como contraparte necessária aos voos livres da tradição ensaística que norteará a discussão. Antes do que complementar, Jessé Souza (Cf. “A modernização seletiva” – 2000; “A construção social da subcidadania” – 2003) tem alertado de que a análise sociológica profissional, da qual o patrono no Brasil é Florestan Fernandes, fundamenta-se, na verdade, em oposição à vertente “culturalista”, cujo nome de maior influência atual é Roberto DaMatta. Contra o paradigma pré-moderno do personalismo, familismo e patrimonialismo, o atual presidente do IPEA chama-nos atenção para a institucionalidade fundamentalmente calcada em valores liberais que rege a modernidade periférica brasileira. “Meritocracia”, “competência”, “neutralidade”, “impessoalidade” etc. etc. são mantras da ordem liberal que há muito submetem as carreiras e relações no Brasil e servem para indicar que não mais é possível o entendimento essencialista e falsamente totalizante. Ora, a desigualdade brasileira segue reproduzindo-se e é atualizada: não por meio de uma cultura “auto-referida” e homogênea (Souza, 2003, p. 13), mas sob injunções francamente globalizadas e que devem sua eficácia ideológica por não serem dependentes das especificidades brasileiras, transcendendo-as na ampla vitória que o ideário liberal logrou no mundo. Atentando para a saída igualmente errônea da microssociologia, incapaz de lidar com a necessária abstração da reflexão teórica bem como com a compreensão mais totalizadora que não deve deixar de ser perseguida, Jessé Souza (2003) resgatou a necessária centralidade dos estudos sobre o negro brasileiro levados a cabo por Florestan Fernandes na metade do século passado com uma equipe de nomes como Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Dessas pesquisas surgiu “A integração do negro na sociedade de classes”, obra que sem fugir ao rigor científico pelo qual Florestan era conhecido, aventa talvez aquela que seja a principal questão brasileira até os dias atuais. Há no clássico, sem dúvidas, inclusive pelo fôlego insuspeito que também caracterizava Florestan, visível ímpeto totalizante; no entanto, premido pela análise minuciosa e pela linguagem contida da pesquisa mais atualizada em relação à nova sociologia da época, Florestan não recai no vício imagístico das velhas alegorias de explicação. O negro surge numa nova era de exploração, cujo código não para de ser atualizado até os dias de hoje, impedindo a completa integração dos ex-cativos e perpetuando a nefasta violência da desigualdade social que nos é íntima. É o paralelo com tal sociologia da modernidade brasileira que queremos traçar ao ler a literatura produzida no Brasil e, de modo mais detido, a literatura brasileira contemporânea, num recorte que recua aos anos 1990. Não seria com imagens dúplices ou tríplices que poderíamos ler uma literatura que deve seus melhores momentos justamente à elaboração da complexidade social da qual não escapa. “Chaves-interpretativas” não dão conta, ao nosso ver, nem da forma de romances tão distintos como, por exemplo, “Joias de família”, de Zulmira Ribeiro Tavares (1990) e “Cidade de Deus”, de Paulo Lins (1997), nem muito menos do problema de autoria, tão marcado no caso de “Cidade de Deus”, mas que, a sua maneira, deve propriamente definir também o modelo de literatura encampado por Zulmira Ribeiro Tavares. Elegemos esses dois autores para o estudo focal entendendo que os romances citados guardam em si – concentrados – as preocupações que norteiam tanto a obra da escritora paulistana quanto a obra do escritor carioca. É até nas limitações poéticas e narrativas dos dois romances, para além do feito estético reconhecido em ambos os casos, que a matéria brasileira da qual derivam vai sugestioná-los amplamente, deixando a marca provisória de uma evolução social cujo dinamismo e eficácia atualizada no campo da dominação a igualmente moderna sociologia brasileira soube captar.
Palavras-chave: FLORESTAN FERNANDES, ZULMIRA RIBEIRO TAVARES, JESSÉ SOUZA, PAULO LINS