Autor de seis livros de poesia, o ensaísta, tradutor, professor e poeta carioca Paulo Henriques Britto (1951-) sempre manteve uma relação ambivalente com o gênero que o consagrou. Experimentou, desde o início de sua vida literária, uma predileção pela prosa, que não se separava de uma certa antipatia pelo discurso “afetado” da poesia, com a qual só foi se reconciliar tardiamente, aos vinte e cinco anos de idade, conforme confessou em depoimento colhido por Augusto Massi em Artes e ofícios da poesia (1991). Britto, que “nunca quis ser poeta”, via na poesia “algo de enviesado, uma afetação um tanto irritante”. Incomodava-o, sobretudo, “a pretensão da poesia de dizer o indizível, de expressar coisas recônditas, espirituais”. Apesar disso, acabou “caindo na poesia”, da qual, confessa, “nunca consegui[u] [se] livrar” (Britto, 1991, p. 264). O depoimento de Britto nos ajuda a compreender o mecanismo central de sua poética, construída a partir da tensão entre as forças de persistência (Britto, 1991, p. 265) e saída da poesia. Em sua obra, a poesia persiste como uma força que se “enquist[a] nos intestinos / mais íntimos da mais agreste prosa”, como um corpo estranho que não pode ser domado pela razão, como algo que interrompe o fluxo do “rio de sentidos retilíneos”. “Cálculos” que invadem as entranhas da prosa, a poesia, pensada como discurso do eu, como linguagem difusa do corpo e do desejo, persiste como força indomável, como energia selvagem que desafia o controle racional da linguagem. Por isso, Britto não hesita em apresentar o eu como uma espécie descrita pela “História natural”, isto é, como uma entidade biológica, um exemplar do reino animal. Essa representação do eu como corporalidade também se repete quando se trata de definir a própria poesia. No poema introdutório de Macau, por exemplo, vemos o poeta identificar no discurso poético a mesma essência animal e o mesmo caráter ridículo atribuídos ao eu, outrora associado a um “panda desgracioso” (Cf. “História natural”, in: Trovar Claro). O poema, intitulado “Biodiversidade”, começa por reconhecer que “Há maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo, / que não requerem prática, oficina, suor”, e, após definir a poesia fazendo uso de outra metáfora animal (“essas palavras bestas estrebuchando inúteis, / cágados com as quatro patas viradas pro ar”), termina com a afirmação do discurso poético como “outra forma de vida”, como um “ramo alternativo do reino animal”. Esta comunicação pretende analisar as diversas imagens que apontam para a ideia da poesia como corpo estranho que se infiltra e persiste no seio de uma poética declaradamente racionalista. Tentaremos mostrar que a poesia de Paulo Henriques Britto, ao incorporar o fracasso do projeto de purificação da linguagem que está na base da tradição antilírica, acaba por afirmar o valor da poesia em sua diferença, isto é, naquilo que ela tem de irredutível aos outros discursos.