Publicada em tempo póstumo, mas dando continuidade à saga de "novelas marafas" - Mar Paraguayo (1992) e Meu tio Roseno, a cavalo(2000).- Mascate (2014) acrescenta mais uma língua ao portunhol selvagem praticado pelo escritor paranaense Wilson Bueno: o árabe. Porém, a ambivalência da personagem, o sírio libanês Faissal Mohamed el-Rachid, ou Don Faruk Mohamed, ou simplesmente Felicio, também conhecido como Turco ou Turca, não se desenha apenas nas palavras e frases em guarani-espanhol-português orientalizado. Sendo um mascate, carrega uma maleta repleta de bugigangas, fazendo surgir na narrativa, além dos espelhos, tecidos, maquiagem, lenços de seda e disfarces, objetos marcadamente heterotópicos (Foucault, 2001), bem como lugares, como os navios, a Arábia lendária, a batalha de Alcácer Quibir, e, figura suplementar, a metáfora da viagem, que inclui a tradição da literatura e os descobrimentos marítimos. Participa ainda, com força espetacular, do drama de uma identidade cindida e expandida, que desafia os limites do corpo e do gênero - há uma condição andrógina, no plano enunciativo, que alterna Aladim e Xerazade e se combina a certa condição estrangeira (Kristeva,1994) de quem nunca está de todo, ainda mais quando conectada a uma profissão que reforça um constante nomadismo. Do ponto de vista de um narrador/narradora "marafa", marafona em seu delírio ou encantamento, tudo é intercambiável nas idas e vindas desse pequeno e denso texto, contrabandeado pela Editora Cartonera YiYi Jambo nas fronteiras do nacional: Há um nome que se expande e inclui outros nomes, ou que se apequena infinitamente pelo uso dos sufixos guaranis; há as coordenadas de um mapa imaginário, com rotas continentais - Brasil -Istambul, Paraná-Damasco, Eldorado del Paraná-Ryad -, por onde amor e ódio circulam e as culturas se desterritorializam, nos interstícios de uma literatura menor (Deleuze, 1997 e 2014) e em direção a vários fins, quer se trate de explorar as tensões políticas do estado nacional ou os impasses da biopolítica, que atingem os corpos não domesticáveis e as questões imigratórias (Pelbart, 2003; Esposito, 2010), quer se trate de narrar, simplesmente, uma paixão e um rompimento amorosos, que faz negócio, do lado de quem conta, do ponto de vista da palavra, inclusive com a morte. Depois das experiências anteriores de Bueno, que, segundo Perlongher (1992), referindo-se ao Mar Paraguayo, produziu uma ficção "hispano-afro-guarani", e depois de um breve diálogo com Guimarães Rosa, em Meu tio Roseno..., a hipótese é a de que, ao incluir outra etnia na sua malha vernacular, o escritor tenta recuperar os trânsitos e comércios bem conhecidos e localizáveis no interior de um Brasil - o dos mascates - e também, em operação simultânea, fazer uma homenagem a algumas vozes relevantes na literatura brasileira contemporânea.