GABRIELA SEMENSATO FERREIRA, RITA LENIRA DE FREITAS BITTENCOURT
A obra de Dora Ferreira da Silva (São Paulo, 1918-2006), desde a fundação de Cavalo Azul, no início dos anos 1960, até publicações póstumas, dedica-se à palavra poética e traz à tona uma leitura atual dos mitos da antiga Grécia. Durante a vida, Dora recebeu diversos prêmios literários, incluindo o Prêmio Jabuti a "Poemas da estrangeira" (1995). Além disso, traduziu as primeiras versões para o português da obra de Carl Gustav Jung. Ainda assim, e apesar de elogiada por poetas como Carlos Drummond de Andrade, foi só na última década que se viu seu nome em maior circulação em escritos sobre literatura brasileira. Recentemente, seu acervo foi organizado pelo Instituto Moreira Salles e publicaram-se obras póstumas, como "O Leque" (2007) e "Transpoemas" (2009). Devido ao tratamento dado a personagens mitológicas como Perséfone Koré e Orfeu, assim como o uso de metalinguagem, seus poemas, em especial os de "Hídrias" (2004) tornaram-se matéria de recentes estudos. No presente trabalho, parte-se da linguagem poético-imagética e enigmática de "Transpoemas" para seguir a trajetória do pensar errante investido nessa obra e que principia, em suas palavras, “no Poema”. Nesse sentido, pode-se pensar na correlação entre esse pensar poético e a “palavra errante” a qual se dedica Maurice Blanchot, em O espaço da literatura. Nessa obra de Dora, o eu lírico, que inicia neutro e torna-se feminino, dirige-se em algumas instâncias ao processo de criação do poema, que se anteciparia à poeta, e indica também o transitar e a passagem por diferentes espaços, assim como o silêncio de onde surgem as palavras. Ao citar Perséfone e Gymnopédie, constrói a imagem de corpos dançantes, em constante movimento, e pede para si um “corpo” emprestado. Considerando-se tais características, essa poesia é aqui analisada a partir das ideias de corpos e pensamento errantes, vinculadas ao “trans” anexado ao título, e ao “poema-pássaro” criado por Dora. Com esse objetivo, questiona-se quais seriam os espaços ocupados nesse trânsito poético, que encena um eu lírico feminino, e de que modo a intertextualidade presente no texto entra em jogo nessas passagens. Assim, retomam-se ideias como a de “trajetória” e “movimento circular”, trabalhadas em obras traduzidas por Dora, como "Os arquétipos e o inconsciente coletivo" (2000), de C.G. Jung, e "O segredo da flor de ouro" (2001), de Jung e R. Wilhelm, procurando determinar que relações podem estabelecer com "Transpoemas". Da mesma forma, importa discutir os “corpos”, nesse contexto, não apenas como “objetos do pensamento”, nas palavras de Judith Butler (1993), mas como construções indicadoras de um “movimento fronteiriço em si mesmo”.