Esta comunicação é sobre as obras Os Anões e Delírio de Damasco de Verônica Stigger. O assunto abordado é a identificação, em ambas as obras, do trânsito promovido pela autora entre universos artísticos e não-artísticos, a priori considerados distintos, e também entre papéis performados por Stigger no âmbito das artes que ela cria e pesquisa. Assim, entendendo o movimento de fluxo como o próprio desenho da escritura da autora, concebo uma chave de leitura dessas duas obras que não as desvincula de seu trabalho como pesquisadora, crítica de arte e curadora. Ao contrário, entendo que o movimento provocado e produzido resulta em uma literatura que desobstrui e desmonta os parâmetros que permeiam os discursos da arte fazendo transbordar fronteiras que ilusoriamente distinguem: artes entre si, arte e crítica, vida e ficção. Uma relação de quase derivação aproxima as duas obras de Stigger. A concepção semelhante acerca dos textos os reúne na sessão “Pré-Histórias”, de Os anões, e pode ser também verificada nas frases de Delírio de Damasco. Em ambos os casos, o que encontramos nos textos curtos e muito curtos são sugestões narrativas, lufadas, como a própria autora diz, que inquietam e desestabilizam o leitor. As pré-histórias e os delírios estão, assim, ecoando entre o arquivo bruto e o manipulado (selecionado, recortado, esvaziado, travestido) pela autora. Esse trabalho pode parecer simples intervenção, de um certo ponto de vista. E pode ser que seja efetivamente simples em termos operacionais. A questão, no entanto, é de autoria e concepção de uma obra, temas caros não apenas à Stigger escritora, como também à pesquisadora e crítica de arte. Ao trabalhar com arquivos, Stigger nos remete a uma série de pressupostos conceituais que esses arquivos transportam para sua arte. Exemplo disso é o que Derrida entende ser o aspecto constitutivo do arquivo: a um só tempo unidade de conservação e de deterioração. Em outras palavras, o mal de arquivo, de que nos fala Derrida, dialoga com a noção de mal batailliana e com a psicanalítica de pulsão de morte. Reúne essas acepções o fato de que operam ao modo de um sistema biológico auto-imune em que a morte é condição para vida tanto quanto a vida depende da morte. Enfim, todo esse arcabouço conceitual evoca uma perspectiva ambígua, não-contraditória e não-excludente que se faz presente no trabalho com arquivos. Ainda a propósito do mal, destaco que a violência e a morte irrompem nas narrativas de Os Anões como nos sonhos, isto é, sob a forma de realização do desejo (Flávia Cera). Assim, atento para essa performance de Stigger como escritora má, que oscila entre o acontecimento, a ficção e o absurdo. Destaco que vários de seus narradores comungam dessa característica de descrever o horror com tamanha trivialidade que ele acaba assumindo um caráter duplamente hediondo ao chegar ao leitor. Em síntese, comento uma literatura que entendo circular dentro e fora dos limites da arte concebendo o texto como corpo permeável aos vestígios desses universos e como espaço de manifestação e elaboração do que ela, autora, descobre e vivencia. O trabalho da artista, nesse sentido, está arraigado ao de pesquisadora, crítica de arte e, sobretudo, de curadora. Sobre esse último, destaco ser proveniente dos estudos críticos das artes plásticas a ideia de que o curador é autor, autor independente. Logo, não se trata de um lugar neutro. Ao dispor dos arquivos alheios, o curador constrói sua própria narrativa curando (Groys) a arte de um discurso sacro e unívoco. Compreendida a partir dos desenvolvimentos da arte pop, do minimalismo e da arte conceitual, que tomaram a cena artística nas décadas de 1960 e 1970, a ideia de performance pressupõe a corporeidade do artista e o instante. Stigger, vinculada a conceitos e técnicas desenvolvidas no âmbitos das artes plásticas modernas – tal como o conceito de dètournement, desenvolvido pelos Situacionistas da década de 1950, e a noção de ready-made criada por Duchamp – empresta seu corpo e seu tempo para curar os arquivos da enfermidade da banalização cotidiana (quando vai ao shopping, por exemplo, recolher as frases entreouvidas enquanto come um doce) e oferece a eles a oportunidade saudável de reverberar em sua escrita. É nesse sentido que entendo a performatividade curadora da escrita de Stigger. Explorando com genialidade o modo de escrita não-criativa (Goldsmith) e expondo a palavra, seja nos tapumes ou nas páginas de seu livro, o trabalho de Stigger consiste em empreender escolhas em meio aos arquivos de que dispõe, promover o esvaziamento do traço, da imagem, da palavra e devolvê-los, ao mesmo tempo, ocos de sentidos rijos e fecundos de possibilidades.