FERNANDA RODRIGUES DE MIRANDA, MÁRIO CÉSAR LUGARINHO
Ler a Literatura Negra enquanto ideia (em movimento) e não como conceito – visto não se tratar de matéria sistematizada sobre a qual exista consenso analítico, escapando de considerá-la mera categoria de análise, cuja função seja elucidar problemas exteriores, já que ela por si só constitui uma problemática histórica e epistemologicamente consistente. Eis o objetivo e também o cerne desta comunicação, que apresentará aspectos preliminares de leituras de romances escritos por autoras negras brasileiras – objeto de pesquisa de doutoramento em andamento, cujo corpo-corpus textual compreende, por ordem cronológica: Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis; Água Funda (1946), de Ruth Guimarães; Negra Efigênia: Paixão de senhor branco (1966), de Anajá Caetano; Pedaços da fome (1963), de Carolina Maria de Jesus; Ponciá Vivêncio (2003) e Becos da Memória (2006), de Conceição Evaristo; Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves. O corpo negro – e aqui especificamente o corpo negro mulher – transcrito, lido e reescrito, anuncia suas formas de auto-inscrição. Desde a Diáspora, em temporalidades e espacialidades diversas, observa-se a articulação entre escrita e experiência funcionando como operador discursivo desta “linhagem” literária. Em razão disto, o corpo (negro) emerge enquanto tradução textual de histórias próprias ou coletivas, fragmentárias e rasuradas. Para esta comunicação, focaremos o romance Um defeito de cor, da escritora mineira Ana Maria Gonçalves. Segundo a autora narra no prólogo, o romance seria uma livre tradução de um manuscrito escrito em português arcaico por Kehinde, africana que foi escravizada e morreu na velhice, depois de idas e vindas através do Atlântico. Considerado romance histórico, articula uma voz em primeira pessoa que é afirmada como originária de um Testemunho. Dessa forma, utilizando recursos ficcionais para costurar as lacunas do texto original, o romance se fundamenta, segundo afirma a autora, como tradução da autobiografia de Kehinde. Com efeito, a ficção começa no prólogo, tendo em vista que o manuscrito que a autora afirma ser fonte das memórias construídas no romance jamais existiu de fato. Em síntese, se constrói uma categoria de verdade testemunhal, que através de memórias ficcionais, deslinda aspectos da História. A narrativa é inteiramente perpassada pelo diálogo ficcional com a História, que por vezes é re-inventada. O discurso, dessa forma, vai sub-repticiamente reinscrevendo o lugar de uma feminilidade que deixa de ser subalterna ao acionar dispositivos de agência, como entre outros, o ato de nomear, presente, por exemplo, na passagem em que Kehinde conta como batizou a heroína do primeiro romance do romantismo brasileiro, “A moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo, autor que a certa altura torna-se personagem da narrativa.
Palavras-chave: LITERATURA NEGRA, SUJEITO DIASPÓRICO, DEVIR-NEGRO, ANA MARIA GONÇALVES