Nas escritas de Graciliano Ramos, a referência ao corpo desempenha um papel muito importante para caracterizar os protagonistas, especialmente nas duas obras memorialistas – Infância e Memórias do Cárcere. Desde Silviano Santiago que considera os sentidos orgânicos, as necessidades físicas como provas da sobrevivência da identidade individual de trauma (Em Liberdade), até Wander Melo Miranda que afirma que “o corpo pode ser visto simultaneamente e contraditoriamente como lugar onde se inscreve a repressão e lugar de resistência a essa mesma repressão” (Corpos Escritos, p. 149), os pesquisadores desta área prestam normalmente mais atenção ao corpo confinado, torturado e arruinado, uma vez que, seja em Infância, seja em Memórias do Cárcere, o corpo é, antes de tudo, o principal alvo da punição. Entretanto, dado que o crescimento e desenvolvimento da criança é um processo evolutivo, dinâmico e formativo, o corpo em Infância também se transforma sempre, e mostra diversas facetas que representam vividamente uma identidade pueril em construção. Em certo sentido, pode-se dizer que é por meio da interação com seu próprio corpo que o protagonista-criança de Infância começa a formar sua individualidade e subjetividade, destacando o si-mesmo entre os outros. Para além dos castigos aplicados pelos pais e professores, que imprimem no corpo (bem como no espírito e na memória) da criança a marca de dor e sofrimento, a identidade do menino-Graciliano ainda é ligada com outros aspectos relacionados com o corpo, tais como: 1) o mundo amplificado ou reduzido pela visão da criança, que utiliza seu próprio tamanho do corpo como referência de medidas, e por isso, quando menor o observador, maior o mundo sob seus olhares; 2) a preocupação pela aparência, que é representada pela higienização excessiva, a mania de lavar as mãos e orelhas bem como a contrariedade às roupas desmedidas e àquele casaco cor-de-macaco que recebeu elogios irônicos; 3) a disfunção do corpo, por exemplo, a cegueira temporária, a artrite; 4) a mudança natural do corpo, nomeadamente o crescimento, o emagrecimento, o despertar da sexualidade, entre outros. Dessa maneira, Graciliano Ramos subverte até certo ponto a subjetividade cartesiana de “penso, logo existo” e reconhece o corpo como uma base indispensável da existência do si-mesmo. Isso é importante porque, por um lado, oferece um novo ponto de vista para analisar a autobiografia, que pode ser estudada a partir da “identidade neurológica” levantada por Oliver Sacks e Paul John Eakin, etc.; e por outro lado, a valorização do corpo implica um valor ético que resiste ao elitismo intelectual e dá apoio aos desprivilegiados, às crianças, às pessoas sem educação, sem conhecimento e sem poder para se defender.