O corpo é um dos produtos mais controversos do pensamento filosófico ocidental. Dentro da configuração de um sistema binário que compreende pares opostos, seu lugar foi historicamente construído nos termos da passividade, enquanto a mente exercia todo o protagonismo. Correlato de pares como imanência/transcendência, feminino/masculino, corpo/mente também sugere uma relação hierárquica dos termos, em que haverá sempre o lado dominante e o dominado. O questionamento que se faz acerca desse lugar secundário e subalterno do corpo na construção binária do pensamento tem em vista resgatá-lo desse abismo teórico-crítico, na tentativa de repensá-lo sob uma nova ótica. Portanto, ao considerar que ele não é puramente um receptáculo que assimila as normas sociais, mas uma instância com potencialidades transformativas incapazes de serem medidas, proponho refletir sobre sua construção nas narrativas Acenos e afagos (2008), de João Gilberto Noll, e “O homem-mulher” (2014), de Sérgio Sant’anna. Tendo em vista que o corpo é desde sempre gendrado, torna-se imprescindível o diálogo com teóricas feministas e, para o contexto dos textos literários analisados, pensadoras/es que enveredam pelos Estudos queer. Nesse sentido, são basilares para este ensaio as teorizações de Simone de Beauvoir, Monique Wittig, Judith Butler, Teresa de Lauretis, Elizabeth Grosz, Donna Haraway, Beatriz Preciado e José Esteban Muñoz; em paralelo com as discussões empreendidas pelos filósofos Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guatarri; o autor cubano e também crítico Severo Sarduy se junta a esse arcabouço teórico com seu afiado livro Escrito sobre um corpo (1979), dadas as instigantes análises que comunicam escritura e corpo. Considerando o caráter subversivo e a atualidade das duas obras analisadas, proponho um movimento que conecte passado, presente e futuro, no sentido de repensar concepções cristalizadas acerca do que nos constitui como corpos humanos e direcionar o olhar para um horizonte possível em que a transformação do conhecimento se torna necessária. Buscam-se novos modos de realidade em que o “ser” possa dar conta de uma multiplicidade de indivíduos que é cada vez mais enfática. É por esse viés que a “queerificação” do pensamento se torna inevitável como instrumento discursivo que viabiliza quebras de paradigmas segregacionistas e desumanos ao mesmo tempo em que abre espaço para se pensar numa reestruturação das sociedades. Essa resistência é o que move, em síntese, boa parte dos Estudos Queer. No contexto literário os rumos não são diferentes, visto que muitas narrativas, como as que são analisadas neste ensaio, e poemas estão apontando, sobretudo na contemporaneidade, novas tessituras do “humano” e a necessidade de mantermos essa noção em aberto. São muitos os horizontes possíveis e, embora queerness esteja no futuro, nos termos de Muñoz, é apenas por meio dos questionamentos sobre nosso tempo, sempre presente, e o de outrora que podemos abrir caminho ao que ainda é desconhecido. As potencialidades dos corpos são inesgotáveis e é precisamente por meio desse aspecto que o não rotulável e até monstruoso, para algumas pessoas, ganha força e importância político-simbólica.