Publicado um pouco depois do romance (Os Moedeiros Falsos, 1925) que tornaria o nome de André Gide profundamente marcado pela relação com o conceito de mise en abyme, já prefigurado em alguns de seus textos teóricos e ensaísticos, o Diário dos Moedeiros Falsos (1927) é a obra que escolhemos para aprofundar a reflexão e o debate sobre este conceito, tão importante para a criação ficcional moderna. Nosso objetivo é analisar o primeiro, dos dois cadernos de anotações presentes neste diário sobre o processo de escrita do romance, verificando os procedimentos conscientemente aplicados pelo escritor francês na elaboração de seu texto e os desdobramentos especulares que ele compõe, seja na duplicação do romance para com o diário, seja na revelação de outras obras e autores visitados durante o período de criação. Como aponta Maurice Blanchot (2005) a respeito desta iniciativa tão particular de registro diarístico da ficção, há na intenção de Gide o reconhecido anseio de alcançar um livro impossível, no papel de criador e crítico, amaldiçoado pelo demônio do calendário (eis o tempo como a grande variável que define e aprisiona a prática de um diário). Neste sentido, a análise pretendida focará todos os dias registrados no primeiro caderno da obra, cobrindo o período de 17 de Junho de 1919 a 7 de Dezembro de 1921, abordando as principais notas de iluminação para o romance que simultaneamente era escrito: ambições pessoais, imposição de regras narrativas, recomendações e conselhos para a escrita, confissões de dúvidas e temores, delimitações de tempo e espaço diegéticos, entre outros elementos fundamentais para a composição do romance. Considerando o caráter intersemiótico do simpósio ao qual esta comunicação se propõe, também cabe destacar a consciência comparativa de Gide para com as outras artes, quando, num de seus registros, relaciona-se a si próprio como um espelho do músico César Franck (organista e compositor belga do séc. XIX), traçando paralelos entre a sua técnica narrativa e alguns termos da prática musical. Além de melhor compreender a técnica de construção abismal, interessa-nos uma observação mais precisa dos caminhos percorridos por Gide como romancista, pois, além de notável dentro de sua arte, foi ele um dos poucos escritores que tão ousadamente se auto refletiu, a ponto de publicar os esboços de seu trabalho em vida, dando a ver suas imperfeições, angústias e incertezas. Trata-se de uma abordagem baseada na perspectiva da criação literária, com o intuito de ampliar as discussões em torno da escrita criativa, que ainda vem conquistando seu espaço no pensamento acadêmico brasileiro.
Palavras-chave: LITERATURA, ANDRÉ GIDE, MISE EN ABYME, CRIAÇÃO LITERÁRIA