Anais
RESUMO DE ARTIGO - XV ENCONTRO ABRALIC
DESCORTINANDO A PELE DE VÊNUS
MARIA DO CARMO DE SIQUEIRA NINO
A peça de teatro Venus in Fur (2010) do dramaturgo americano David Ives é baseada em aspectos do romance do autor austro-húngaro Leopold Sacher-Masoch (de 1870) tendo sido adaptada para o cinema, resultando no filme homônimo dirigido por Roman Polanski (2013), cujo cenário foi feito pelo próprio Ives em colaboração com o diretor polonês radicado na França. Esta perspectiva intersemiótica entre estes autores de diversas origens assim como as várias formas de expressão, foi uma das razões pelas quais a escolhemos para refletir sobre os inúmeros níveis de especularidade narrativa constitutivas da ficção. De fato, a história (filme e peça) se enquadra no contexto americano/europeu hoje, por meio de um processo de audição teatral onde a arte, através da literatura do período vitoriano (o romance se debruça sobre uma relação autobiográfica de dominação e subserviência consentidas), da pintura renascentista (Vênus no espelho, do artista veneziano Ticiano), da tragédia para o teatro escrito em 405 a.C. (As Bacantes, de Eurípedes) formam a porta de acesso para a abordagem auto-reflexiva sobre gênero, sexualidade e poder em um panorama temporal abrangente, para dizer o mínimo. Dispositivos meta-narrativos são empregados em uma sofisticada estrutura moebiana onde os limites entre fantasia, mito, realidade, identidade, disfarce, passado e presente, constituem o mote para uma complexa mise-en-abyme, nos moldes descritos pelo sistemático estudo de Lucien Dällenbach (Le récit speculaire: essai sur la mise en abyme). Este recurso permite aos autores do cenário uma abordagem autoconsciente através de seus dois únicos personagens, o diretor de teatro e a atriz aspirante ao papel (cujo nome se confunde com a personagem feminina do romance vitoriano), e se reduplicam em abismo nos seus papéis das histórias interior e exterior, aguçando a consciência do público sobre as implicações entre arte e vida, pois permite questionar as fronteiras entre as arbitrariedades do artifício da ilusão dramática, nos vários níveis de realidade diegética presentes, o que torna certas passagens indiscerníveis quanto ao limite temporal, entre história interna e externa a qual a obra faz referência constantemente. Há ambiguidade e ambivalência deliberadas nas escolhas de nomes e em suas variantes, recursos a objetos cênicos, assim como a elementos precisos de transição entre luz e som, tudo aliado à insidiosas instâncias de subversão e alternância nas dinâmicas de poder. A retórica narrativa, como em um caleidoscópio, a partir do uso destes artifícios literários e dramáticos, turva a nossa apreensão dos fatos entre fantasia e realidade, ao distribuir a ação entre vários períodos da história humana que exibe, como se sabe, uma apreensão sensível diferenciada entre os papéis pretensamente estabelecidos para o homem e para a mulher na nossa cultura ocidental. Esta se revela então como uma estrutura bastante pertinente para uma reflexão plenamente atualizada sobre os papéis de gênero, status e por consequência de poder, no qual o público hoje pode se identificar facilmente. Assim como a Vênus se olha no espelho que lhe estende Cupido no quadro de Ticiano, nos vemos implicados neste ato de olhar ao mesmo tempo panorâmico, mas que, como acontece com o espelho, recorta o mundo visível, unificando a diversidade do mundo real dentro da unidade da visão e deste embate saímos mais conscientes sobre certos valores de nossa cultura.
Palavras-chave: MISE EN ABYME, LITERATURA, INTERSEMIOSE, CINEMA
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