Anais
RESUMO DE ARTIGO - XV ENCONTRO ABRALIC
A AUTOFICÇÃO DE SERGE DOUBROVSKY: REGISTRO DAS MEMÓRIAS DE SI. OBRA EM SI BEMOL
LUCIANA PERSICE NOGUEIRA
Serge Doubrovsky (1928) é romancista, professor, tradutor, crítico e teórico da literatura. Referência inevitável nos estudos sobre o gênero da autobiografia, cunhou, em 1977, o termo e conceito de “autoficção” – prática que não inaugurou, mas que sistematizou a partir de então. A escritura autoficcional de Doubrovsky será concebida e arquitetada a partir da leitura de Le Pacte autobiographique (1975), de Philippe Lejeune, cuja grade tipológica revelara uma casa vazia, onde não coincidiam nome de personagem e nome de autor, num romance (e não numa autobiobrafia). Doubrovsky decide, então, enfrentar o desafio declarado pela tabela, e desenvolve uma escritura original. Numa de suas múltiplas referências ao próprio texto, lê-se: “Escrevo meu romance. Não uma autobiografia (...) sou um ser fictício. Escrevo minha autoficção (...) Desde que transformo minha vida em frases, me acho interessante (...) Minha vida fracassada será um sucesso literário” (Un Amour de soi, 1982). A autoficção, portanto, transforma o “si mesmo” em espetáculo. Esse espetáculo é, inicialmente, o do agenciamento de uma série de distintos registros de memória: o autor (con)funde a memória biográfica com a memória do narrador (e protagonista) e a memória da obra (em remissões a outros livros escritos anteriormente), além da memória de obras de outros autores (pois Doubrovsky faz constantes alusões a cânones da literatura francesa em intrincados diálogos intertextuais). O espetáculo é também, segundo o próprio autor, “interessante”: sua autoficção será um sistemático exercício narcísico que vai se declinar em dois planos principais: pelo hibridismo de gêneros, que mescla ficção, autobiografia, ensaio e psicanálise; e por um trabalho lúdico e engenhoso com a língua. Em continuidade (ou amálgama) com relação à própria obra crítico-teórica, Doubrovsky desenvolve, quanto ao trabalho com a língua, o que denomina, alternativamente, de “escritura consonântica”, “sintaxe do descontínuo” e “discurso quebrado”. Trata-se do uso de efeitos sonoros (particularmente aliterações) e singularidades gráficas (espaçamentos irregulares, palavras e frases escritas em maiúsculas – como se o narrador gritasse o que está escrito –, ausência de pontuação etc), que se articulam em meio a assimetrias na distribuição das frases na página escrita, entre lacunas e vazios. Na dialética vazio-pleno, o leitor deve realizar os nexos entre os diversos níveis de registro de memória, e construir, junto com o autor, a imagem do protagonista – esse ser que se multiplica pelo texto, proliferando-se, exaltando-se, e ressoando em eco a si mesmo, em bemol (a expressão “un bémol”, em francês, significa “um problema”, algo que destoa). Esse efeito de eco (narcísico) é premeditado: ao buscar um som próprio, Doubrovsky encarna, propositalmente, uma citação de Marcel Proust (pois a conhece enquanto leitor e crítico): “todo escritor é obrigado a fazer a própria língua, como todo violinista é obrigado a fazer o próprio som”. A autoficção, assim, é uma obra sobre si, vários “sis”, em eco a si, em si bemol.
Palavras-chave: SERGE DOUBROVSKY, AUTOFICÇÃO, MEMÓRIA, LITERATURA CONTEMPORÂNEA
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