A ideia de feminilidade se apresenta na superfície como algo dado, natural, mas ao buscar-se o cerne da questão, é possível perceber que trata-se de uma construção social, ostensivamente trabalhada e imposta à mulher burguesa desde a ascensão da nova classe social – ocorrida na Europa no século XVIII. A reconfiguração da sociedade provocada pelo nascimento da burguesia ocasionou também uma reorganização dos papeis da mulher nesta nova estrutura social: com o progresso dos self made men, ou seja, os burgueses, uma nova classe passa a ter acesso à alta cultura e, naturalmente, à literatura, o que provoca a formação de um novo público leitor, composto, principalmente, por mulheres. Por conseguinte, toda uma atividade literária voltada a essas mulheres é criada: obras – principalmente romances, mas também textos curtos – são escritas com a finalidade de atender a esse novo público e é justamente através dos escritos direcionados ao público feminino que inicia-se um ostensivo trabalho de propagação e fixação do “ideal de mulher”, isto é, através destes textos, pregava-se um ideal de comportamento feminino, que deveria ser estritamente seguido por aquelas que desejassem um papel de mulher virtuosa. Toda esta agitação se reflete na forma como os escritos literários retratam a mulher da época: em sua grande maioria, as protagonistas passam por grandes provações antes de atingir um final feliz ou de se aniquilar por completo através da morte, afinal, uma vida de privações aguarda a mulher que pretende atingir o ideal de virtuosidade propagado pela época. Mas há também obras que seguem na contramão desta tendência, apresentando mulheres impetuosas e avessas às convenções de seu tempo. No primeiro caso pode-se enquadrar Marie, a protagonista do drama goethiano Clavigo e, no segundo, Lucinde, personagem-título do romance Lucinde, de Friedrich von Schlegel. A trama da peça de J.W. Goethe gira em torno do caráter volúvel de Clavigo e de seu amor impossível por Marie, jovem que corresponde ao amor do protagonista e sofre profundamente por conta desta desilusão até sucumbir definitivamente com sua morte. Já Lucinde narra o amadurecimento de Julius até seu encontro com Lucinde, com quem mantém um casamento não tradicional. O romance, ao contrário do drama goethiano, explora livremente a sexualidade e os protagonistas rejeitam veementemente as convenções sociais e não é sem razão que se estabelecem em um casamento não tradicional. Em outras palavras: enquanto Clavigo e Marie sucumbem por não se enquadrar aos costumes de seu tempo, Julius e Lucinde voltam-se para a simplicidade de uma vida alheia a estas convenções e, assim, se elevam em meio à artificialidade. Por fim, vale destacar que, embora as obras tenham vindo a lume em distintos estilos de época, – Clavigo pertence ao Sturm und Drang, enquanto Lucinde surgiu no âmbito do Romantismo – ambas foram apresentadas ao público no mesmo século e encerram importantes questões no que se refere ao papel da mulher burguesa. Desse modo, justifica-se uma análise comparativa destas obras.