FERNANDA VIEIRA DE SANT ANNA, LUCIA RODRIGUEZ DE LA ROCQUE
Ilegitimidade na representação literária pode ser vista como uma reação a uma situação contemporânea, ressaltando problemas que são condicionados, mas não resolvidos pelas normas coetâneas (ISER, 1994, p.30). Além de apontar uma ruptura na normalidade, em diversas obras, a figura do bastardo é associada a desamparo, crimes, dor, trauma e más ações e sua figura transgredi, ao passo que reafirma, a sacralidade da instituição familiar tradicional ocidental, pai-mãe-filhos. Nesse sentido, a obra Frankenstein or The Modern Prometheus (1818), de Mary Shelley, apresenta um dos maiores ícones da bastardia na literatura, ao desdobrar como o cientista Victor Frankenstein cria um humanoide cientificamente e o abandona logo após o experimento, com a trama girando em torno de como suas vidas seriam afetadas por essas circunstâncias. Nesse ponto, se a condição humana reclama a dor, a criatura de/em Frankenstein reclama uma dor singular composta por camadas inter-relacionadas de dores físicas e psicológicas, tal como a de ser um experimento, ser rejeitado, desamparado física e emocionalmente pelo seu criador e pela sociedade, desprezado nos poucos contatos com humanos (SHELLEY, 1818, p.96). Por outro lado, Victor, em sua rejeição e negação, é assaltado pela dor e culpa de perder seus queridos pela mão da catástrofe gerada, com dores e cuidado infinitos, por ele próprio (SHELLEY, 1994, p.55). A criatura e seu criador figuram como representações das transgressões morais e éticas na ciência, na natureza e nas estruturas familiares sacralizadas na cultura ocidental. Este trabalho possui em Freud (2013a, 2013b) seu principal aporte teórico e problematiza os limites do parentesco, a ilegitimidade como transgressão na literatura e na sociedade, a monstrificação do bastardo como ruptura e reafirmação do status quo, bem como os estados de angústia e aflição de criador e criatura e seu dilema para sempre indissolúvel.