Esta comunicação pretende discutir a tradução no horizonte da questão do tempo. Comumente reduzida ao esforço pela continuidade dos dizeres emitidos pelo texto original, portanto responsável por uma espécie de sobrevida desse original em outra língua, a tradução fica submetida a reflexões da ordem da preservação de uma identidade primeira. Tal temporalidade surge pelo viés de uma leitura que buscaria encontrar preservado o “eu” emitido pelo texto original através de sua repetição em outra língua, permanecendo idêntico e contemporâneo a si mesmo. Se há nessa relação original-tradução uma temporalidade da natureza da continuidade, buscamos pensar aqui nas expressões de descontinuidade existentes na tradução – momentos em que ela se encontra desarticulada da lógica da repetição do idêntico. Nesse movimento, passamos a ler na tradução rastros de um tempo a sua maneira distinto, tendo com o original apenas uma de suas possibilidades de relação – mas articulando de forma disseminada relações infinitas de outras ordens: o tempo da tradução no horizonte da sua recepção, o tempo da tradução como obra literária escrita no território da língua de chegada (portanto, também uma obra dessa cultura), o tempo da tradução em relação a outras traduções, etc. Muitos tempos distintos cada vez que passamos a ler a tradução a partir de relações também distintas. Multiplicidade existente também no texto original, embora menos evidentemente problemática quando se trata de um texto lido a partir da perspectiva da originalidade. Jean-Luc Nancy, ao discorrer acerca da experiência do transplante, escreveu: “Meu coração tem vinte anos a menos do que eu, e o resto do meu corpo tem uma dúzia (no mínimo) a mais do que eu. Assim rejuvenescido e envelhecido de uma só vez, não tenho mais idade própria e não tenho mais propriamente uma idade". Com o nome de O intruso, este ensaio abordou as diferentes temporalidades de um mesmo corpo. Ao herdar o órgão de um sujeito ligeiramente mais novo que ele, Nancy percebeu que essa herança é menos da ordem da preservação de algo identitário do outro em si, e mais algo que joga a favor de uma descontinuidade de si e do outro – o acontecimento de um transplante, podendo ser pensado como semelhante ao que ocorre na tradução, passa a ser o “index formal de um encadeamento inverificável e impalpável. Entre eu e eu sempre houve um espaço-tempo.” Essa comunicação propõe então refletir acerca da temporalidade da tradução, atividade que conformaria o paradigma da questão do tempo na linguagem, a partir da noção de herança e aquilo que ela exibe de contemporâneo e extemporâneo. Referência: NANCY, Jean-Luc. El intruso. Trad.: Margarita Martínez. Buenos Aires: Amorrortu, 2006.