Este trabalho pretende analisar a centralidade da autotradução na obra do escritor irlandês Samuel Beckett, que escreveu extensivamente em uma língua estrangeira, o francês, e os diversos efeitos desse distanciamento na própria obra. A autotradução se coloca como um conceito limite dentro da teoria da tradução e colabora para tensionar a concepção tradicional, que supõe uma hierarquia entre o texto de partida e o texto de chegada. Consideramos que, em Beckett, essa escrita literalmente estrangeira e a autotradução constituem, mais que um mero procedimento, uma poética (ou, como apontou o próprio autor, uma “literatura da despalavra”). O movimento de vai-e-vem de um texto para o outro corresponde à dimensão crítica dessa obra dupla, que se volta para si mesma e, analogamente, à dimensão da própria narrativa beckettiana, fragmentada, especular e estrangeira, seja qual for a sua língua de origem. O que se pode perceber é que essa duplicidade não se restringe ao caráter bilíngue dessa obra, que é, na verdade, revelador de um tema onipresente: podemos destacar os personagens duplos (Didi/Gogo, Winnie/Willie, Molloy/Moran), as obras duplas (Molloy, que é dividida em duas partes semelhantes), os títulos duplos (como o que reúne três obras, Nohow on, no qual « on » é também a imagem invertida de « no »), as expressões duplas (« ainsi a-t-on beau/ par le beau temps » Beckett, 1978, p.14), assim como as frases duplas e simétricas (« Tantôt l’un ou l’autre. Tantôt l’autre ou l’un », Beckett, 1991, p.8). Esse jogo de espelhos invertidos e essa “obsessão do distanciamento”, conforme a definição de Bruno Clément (1994, p.17), não podem ser compreendidos fora desse processo de distanciamento original, e que lhe é tão caro, do lugar comum da língua materna. Se a tradução chega sempre a contratempo, a dimensão temporal, em Beckett, se coloca, de início, como problemática, já que há um distanciamento do próprio autor consigo mesmo (enquanto autotradutor). É ainda mais urgente considerar essas questões quando se trata de traduzir Beckett para uma terceira língua, como veremos no caso das traduções para o português, por exemplo. A impossibilidade de se estabelecer um “original” coloca o tradutor em uma situação ainda mais complexa, ao mesmo tempo que fascinante, frente a uma obra que radicaliza essas questões referenciais, temporais, identitárias , uma vez que esses “originais” já se constituem como temporalmente distantes e que o aspecto paradoxal dessa complementaridade e estranhamento entre eles é justamente o que define a própria obra.