A presente proposta possui como objeto o estudo comparativo das obras Galileia, de Ronaldo Correia de Brito, e Retablo, de Julián Pérez Huarancca. Nascido no Ceará, em 1951, o médico Ronaldo Correia de Brito consolidou-se no mundo literário em 2008, quando publicou Galileia, romance ambientado no sertão nordestino. Nascido em Ayacucho, Peru, no ano de 1954, Julián Pérez Huarancca é professor universitário e teve como seu primeiro grande sucesso a narrativa Retablo, publicada em 2004. Ambientadas em locais distantes dos grandes centros do Peru e do Brasil, as obras são narradas em primeira pessoa por sujeitos que retornam aos seus territórios de origem e passam a recordar o pretérito. Ambas narrativas revelam segredos, tensões, vinganças, mortes e outros conflitos em meio ao descortinar de tradições locais e de passados familiares. Romances nos quais as dualidades passado e presente, rural e urbano, rusticidade e requinte, modernidade e tradição são constantes, Retablo e Galileia fogem de quaisquer relatos pitorescos. Pelo uso da memória, os narradores são colocados frente a si e a seus medos. No desenrolar dos enredos, revelam-se a errância, o trânsito, a fragmentação e o individualismo, características que, próprias da literatura contemporânea consagrada pela crítica, parecem atualizar vertentes artísticas dadas como retrógradas ou mortas, a saber o regionalismo e o indigenismo. Lendo Galileia e Retablo como herdeiras das tradições regionalista brasileira e andina/indigenista peruana, entende-se que ambas são resultantes de um processo de transculturação, que, ainda vivo na América Latina, impõe o diálogo com o discurso colonial e com a tradição literária, um diálogo no qual transparece a “totalidade contraditória”, para usar um termo de Cornejo Polar, da cultura latino-americana. Ao romper com o conceito de homogeneidade cultural e com a visão monolítica do sujeito, as narrativas reescrevem a imagem do homem andino ou sertanejo e dos espaços nos quais eles se inserem. Notabiliza-se, na constituição das partes, as contradições locais e deixa-se transparecer os deslocamentos linguísticos e culturais típicos da heterogeneidade, oscilante e descentralizada do Peru, do Brasil e de toda a América Latina, de espaços marcadamente híbridos, os quais não podem ser lidos como fechados em suas fronteiras locais ou nacionais. A compreensão de Galileia e Retablo como herdeiras das literaturas regionalista brasileira e indigenista peruana, coloca-nos frente ao ponto crucial da presente proposta, qual seja a rejeição contemporânea de críticos, de editoras e de autores em relação a quaisquer laços com as correntes mencionadas. No Brasil, a partir da segunda metade do século XX e, sobretudo atualmente, a crítica literária tendeu majoritariamente a rechaçar obras ambientadas em espaços distantes dos grandes centros urbanos. No Peru, por sua vez, embora aparentemente a crítica esteja convencida sobre a existência de uma evolução, a partir dos anos sessenta do século passado, do indigenismo literário ortodoxo, o que, sugeriria em lugar da negativa da existência de uma literatura atual dos Andes, as divergências sobre a definição do neoindigenismo acabam por aproximar as conclusões críticas do posicionamento de analistas brasileiros sobre o regionalismo literário. Ambos estariam extintos. As conclusões críticas, patenteadas nos discursos acima, sejam elas brasileiras ou peruanas, possuem reflexos nas posições dos autores contemporâneos. Entrevistas concedidas, por Ronaldo Correia de Brito e por Julián Pérez Huaranca mostram a tentativa dos autores de afastar seus textos das correntes regionalista e indigenista, respectivamente. Situação similar, pode-se ler nos discursos que apresentaram Retablo e Galileia para o mercado. Retablo, publicado primeiramente pela Editora San Marcos, foi apresentado como um romance da violência política em que “los sujeitos andinos ya non son más aquellos que fueron representados em la narrativa indigenista [...]”, pois “asumen su incorporación a la sociedad peruana em tiempos actuales”, “en efecto, em ella están recreados los profundos cambios sociales que se operan em un ámbito del Ande [...]” e Galileia como um “texto contemporâneo”, no qual “convergem pessoas de todo o mundo” e a tradição é superada. A convergência de teses instiga o debate. As palavras autorais parecem reproduzir conclusões dos críticos, alinhar-se ao discurso editorial sobre suas produções e obliterar características de suas próprias obras. Surgem algumas perguntas: Por que os autores contemporâneos, especialmente Perez Huaranca e Correia de Brito, repetem as conclusões da crítica? A reprodução de discursos surge devido ao simples compartilhamento de opiniões entre a crítica e os autores? Em que medida as negações do regionalismo e do indigenismo surgem por imposição dos mercados editoriais brasileiro e peruano? Se há pressões advindas dos mercados editoriais, como, quando e por que o posicionamento das editoras foi alinhado ao discurso da crítica, seja ela jornalística ou acadêmica? Em que medida os posicionamentos de recusa do regionalismo e do indigenismo são destruídos por características presentes nos textos dos autores, especialmente Galileia e Retablo? Eis as principais perguntas que nortearão a comunicação a ser desenvolvida, questões calcadas no entrelaçamento contemporâneo, também na América Latina, entre arte e mercado.