Anais
RESUMO DE ARTIGO - XV ENCONTRO ABRALIC
EM BUSCA DE MUNDOS PERDIDOS: A BELLE EPOQUE, A ARQUEOLOGIA E O ROMANCE PROUSTIANO
LUCIANA PERSICE NOGUEIRA
A Belle Epoque corresponde, de uma maneira geral, a um período de paz e prosperidade, revestido de brilho – no campo das artes – e de entusiasmo – por inovações técnicas e tecnológicas. Combinados, brilho e entusiasmo alimentam uma cultura urbana cosmopolita e complexa, eivada de sucessivas e profundas transformações, em todos os níveis. Uma das ciências que se renovam, desenvolvem e estruturam nesse período é a arqueologia. Esse “estudo do passado” evolui, descortina admiráveis velhos mundos, e, a cada nova descoberta, encanta e anima círculos intelectuais e acadêmicos da época. Evidentemente, não se trata de mera onda de curiosidade nostálgica. Trata-se da expressão, no mundo da pesquisa científica (grandemente influenciada pela tradição humanista), da revolução do olhar que se opera ao longo do século XIX e se estende pela Belle Epoque. Jonathan Crary (2012), ao estudar a visão e a modernidade no século XIX, usa por epígrafe de seu livro uma frase do filósofo francês Paul Virilio: “o campo da visão sempre me pareceu comparável ao sítio de uma escavação arqueológica”: visão ou registro de imagens que se produz por camadas, acrescentando e acumulando sedimentos e impressões (inclusive no sentido fotográfico). A arqueologia será, assim, signo da visão moderna que impera na Belle Epoque, e funcionará, inclusive, como metáfora dessa renovação da visão do mundo, em diversos fenômenos intrínsecos a essa modernidade. Freud, por exemplo, a usa como modelo para seu método de análise. E Proust, escritor paradigmático da Belle Epoque francesa, e de forma totalmente independente do “pai da psicanálise”, absorve a mesma estrutura em sua escritura (independente, já que Freud e Proust não tomaram conhecimento de seus respectivos trabalhos). Pois estava “no ar do tempo” essa busca, em camadas inferiores e anteriores, de perspectivas, explicações e sentidos. Marcel Proust retrata, com descomunais detalhe e esmero, um vasto afresco da sociedade parisiense, seus personagens e celebridades, misturando ficção, história, e autobiografia – o que vai provocar, na medida em que os volumes da obra são editados, reações imediatas, nem todas positivas, de um público que reconhece sua atualidade – tanto no caráter mundano da(s) história(s) narrada(s) quanto nos enxertos de crítica e teoria da arte afinados com as polêmicas que se travavam no meio artístico e científico da época. Nas entrelinhas dessa obra romancesca colossal, versão proustiana de uma “comédia humana” (Proust é grande leitor de Balzac), lê-se um importante e erudito ensaio sobre a arte e o tempo. Em Busca do Tempo Perdido é uma obra multifacetada, que o próprio autor compara a uma catedral, mas que poderia ser considerada como uma “catedral enterrada” (outra referência a Balzac, que fala de uma “cathédrale ensevelie”) – obra, portanto, sobre o tempo, sua perda e sua busca – inclusive arqueológica. Um dos principais inspiradores dessa obra literária monumental é John Ruskin (1822-1900) – esteta, moralista, teórico, sociólogo, reformador socialista, crítico de arte, desenhista, colecionador e mecenas britânico cuja obra – também ela colossal – fascinou Proust durante alguns anos. Entre 1899 e 1906, o escritor francês vai dedicar todos os seus esforços ao estudo, comentário, interpretação, tradução e divulgação de títulos do pensador britânico na França, antes, portanto, de escrever sua Recherche. Aliás, esse trabalho, a conhecida “era das traduções” (expressão sua), lhe permite, justamente, abandonar esboços inacabados (publicados postumamente: Jean Santeuil e Contre Sainte-Beuve) e conceber o projeto literário da Recherche, que, com o tempo, o incluirá no rol dos “clássicos” franceses. Ruskin é teórico do “olhar inocente” (que não é, de fato, inocente, mas livre de convenções e códigos históricos) diante da obra de arte, e prega uma visão especializada, que recebe cores e formas como conjuntos de fragmentos e privilegia o processo de percepção. Ruskin será, por isso mesmo, grande rival do arquiteto francês Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879), e eles estarão em campos opostos de políticas de preservação patrimonial (Ruskin defende o “ruinismo” – que leva em conta a ação do tempo como elemento constituinte do monumento a ser preservado –, enquanto Viollet-le-Duc promove a restauração interventora de monumentos, eliminando os traços da ação do tempo sobre eles). Proust, em vários momentos de sua obra, vai deixar clara sua própria oposição às concepções de Viollet-le-Duc (alinhando-se a Ruskin, portanto, sem necessariamente mencioná-lo). Proust também vai semear referências à arqueologia e a sítios arqueológicos ao longo dos tomos de seu romance. Vários trechos de sua obra poderão ser destacados para evidenciar e explanar como o texto proustiano testemunha o trabalho do “ar do tempo” (como aqui mencionado), assim como manifesta a importância da arqueologia, e da visão e do olhar arqueológicos, diante do mundo e das artes durante a Belle Epoque.
Palavras-chave: BELLE EPOQUE, ARQUEOLOGIA, MODERNIDADE, PROUST
voltar