A comunicação tem por intuito analisar a relação entre as versões do mito de Anfíon presentes em suas fontes antigas (sobretudo As Fenícias de Eurípides, Argonáutica de Apolônio de Rodes e Arte poética de Horácio) e o uso feito por João Cabral de Melo Neto em seu poema “Fábula de Anfíon”, do livro Psicologia da Composição, de 1947. As duas versões são mediadas por outra apropriação, a apresentada por Paul Valéry no melodrama Amphion, escrito para a música de Arthur Honegger em 1931, principal referência do mito para João Cabral. Anfion, a personagem central do primeiro poema desse livro, e seu mito parecem ter sido meticulosamente escolhidos por Cabral na composição de uma ampla fábula metapoética em Psicologia da composição: é um músico habilidoso com a lira, tão habilidoso que conseguiria com seu instrumento manipular objetos. Teria, então, com esse dom construído com o irmão as famosas muralhas de Tebas, milagre já presente nas versões antigas. Um primeiro ponto claro de ligação é a própria relação sintética entre poesia e música na antiguidade, sendo o instrumento musical com o qual tradicionalmente Anfion é apresentado, a lira, ainda hoje um símbolo do fazer poético (por Cabral convertido curiosamente em flauta). O segundo ponto, e aparentemente o ponto decisivo, é a imagem da construção associada à poesia. João Cabral de Melo Neto, já em O engenheiro, demonstra um intenso interesse na relação entre a arquitetura moderna e as outras artes, imaginando que a lição básica dessa arquitetura pós-Le Corbusier que lhe era tão cara, é que seria possível “fazer arte não com o mórbido, mas com o são, não com o espontâneo, mas com o construído”. Por fim, entre as coincidências, uma forte divergência entre Amphion e Anfíon: para o primeiro, toda criação é ainda um milagre, um milagre apolíneo, positivo, que representa a capacidade de a divindade, através da arte, organizar um mundo desordenado, feito de matéria inerte. Já Anfíon caminha no sentido contrário: a poesia que lhe surge do exercício de tentar se distanciar dos aspectos factuais da realidade, de “domar o acaso”, depara-se com o próprio silêncio. O Anfíon de Cabral é em tudo um asceta no deserto em busca desse silêncio, em que encontraria “a esterilidade que procurava”. Buscaremos, então, analisar as camadas do mito presentes na versão cabralina, a última da série, tomando o próprio mito como uma narrativa sempre em progresso (e, no caso, algo como uma “língua franca” por meio da qual gerações tão distantes podem discutir sobre questões do gesto criativo/criador) em que, através de suas escolhas, Cabral posiciona sua poética.