MÁRCIA DENISE ASSUNÇÃO DA ROCHA, SÍLVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA HOLANDA
Propõe-se neste estudo que a imagem do herói simbolizada na obra Dom Quixote (1605/1615) — “verdadeiro patrimônio da humanidade” (VIEIRA, 2002, p. 9) — de Cervantes (1547-1616), tenha exercido influência sobre a memória da literatura brasileira, incidindo, sobretudo, na obra de Guimarães Rosa (1908-1967). A grande criação do “príncipe dos engenhos”, o Cavaleiro da Triste Figura, tal qual um mito do idealismo moderno (WATT, 1997), continua a influenciar nas mais diversas esferas, quer artísticas, sociais, morais, culturais ou históricas, e tem percorrido, junto ao seu Fiel Escudeiro, várias regiões do planeta, ensinando-nos lições que reverberam para além das claves satírico-cômicas do texto literário, de modo que o herói às avessas acaba por converter-se em “imagem eterna” (MIELIETINSKI, 1987, p. 119) como expressão máxima do idealismo presente no espírito humano. Em terras brasileiras, observamos que na imagem de Quixote se dá um dos mais garbosos encontros entre a literatura nacional e a literatura espanhola. Verdadeiro amante do castelhano e leitor de Cervantes, Guimarães Rosa entrevê grandes possibilidades de leitura acessadas para além do cômico em Quixote ao vislumbrar que tal obra nos propõe “realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento” (ROSA, 1967, p. 3), a partir da risada e meia provocada pelo gênio cervantino. A influência do herói quixotesco é marcante na obra de Rosa e a loucura lúcida do herói é claramente vislumbrada em um dos personagens mais excêntricos dentre os contos de Primeiras Estórias (1962): “Tarantão, meu patrão”. Nossa cavalgada aqui vai além ao propormos para essa comunicação que os ricos caminhos de significação abertos pelo cavaleiro manchengo do século XVII resvalam na obra-prima da literatura brasileira Grande sertão: veredas (1956) com seu herói-narrador Riobaldo, ao baldear sua vida entre letras e armas, tal qual Quixote. Impelidos pela paixão que tais personagens injetam na modernidade, aceitamos o desafio de acompanhar a cavalgada desses heróis, explicitando as ressonâncias quixotescas sobre o romance de Rosa pelo viés da travessia que se perfaz através de intervenções míticas, arquetípicas, como se evidencia pela proposição hermenêutica que se adotará de que cintilações do mito do Quixote — este, por sua vez, descendente das novelas de cavalaria — podem ser vistas também no romance Grande sertão: veredas, de modo inverso, mesmo arbitrário em alguns momentos, ao propor a abertura para as dimensões de “mágicos novos sistemas de pensamento”. Para se chegar a tal comparação hermenêutica, é fundamental que incorporemos em nosso estudo as atualizações das obras, bem como levar em conta os ensaios de maior relevo que lançaram novas luzes sobre determinadas passagens e episódios das obras em questão, tais como os estudos da premiada pesquisadora cervantina Maria Augusta Vieira. Revelar-se-á, desse modo, como Quixote — leitura fecundante de muitas outras obras clássicas como, aqui arriscamo-nos a explorar, incide no “último dos clássicos” (NUNES, 2008, p. 571), a partir do mito do herói quixotesco que imprime sua marca indelével na obra.
Palavras-chave: HERÓI., MITO., DOM QUIXOTE., GRANDE SERTÃO: VEREDAS