Este trabalho se dedica ao estudo intercalado de literaturas contemporâneas de mulheres negras no Brasil e nos Estados Unidos (EUA). Os contornos sócio-históricos dos contextos nos quais surgiram tradições literárias engendradas por afrodescendentes nessas localidades são explorados de modo paralelo, com o objetivo de formular comparações críticas entre as duas mais importantes diásporas africanas estabelecidas em território americano. O entrecruzamento de semelhanças e diferenças contextuais realça questões identitárias e políticas das trajetórias culturais de sujeitos negros nas Américas, bem como o impacto de suas produções literárias nos sistemas significativos em que suas obras se inserem. Pelas margens dos estudos literários, amplia-se a compreensão crítica das literaturas contemporâneas de afrodescendentes e da agência de sujeitos cuja escrita está vinculada ao seu processo de formação identitária. Entretanto, nas realidades culturais atuais estadunidense e brasileira, trata-se de uma intersecção entre o quasicanônico e o marginal; o reconhecimento e o semiobscurantismo; a volumosa obra e a escassa publicação; as possíveis portas abertas das grandes editoras e as efetivas restrições de um mercado editorial hegemônico. A ressalva não invalida a busca, mediante um gesto comparativo, de possíveis “entre-lugares” (Bhabha, 2010) nas experiências de afrodescendentes narradas em seus textos literários, como a comparação entre a obra de Maya Angelou e Mãe Beata de Yemonjá, apresentada neste trabalho. O tropo “encruzilhada” fornece uma epistemologia apropriada para se pensar o entroncamento de textos e contextos no âmbito do Atlântico Negro, à procura de pontos de contato do inesperado. Tanto no Brasil como nos EUA, as literaturas negras se distinguem como formas de saber carregadas de legados e significações de origem africana. Através de uma perspectiva de análise cultural ampla, visualiza-se o cruzamento de literaturas de afrodescendentes no espaço regido pelo egrégio trickster africano que transcende as fronteiras de tempo e espaço, de codinome Exu. Esse protagonista que atua entre deuses e humanos é produto da cosmovisão dos iorubás, os quais, de modo semelhante aos antigos gregos, são caracterizados por sua riqueza artística e poética. (Thompson, 1984) Em comparação com o mensageiro e intérprete das divindades gregas Hermes, de cujo epíteto deriva a palavra “hermenêutica”, o nome de Exu também pode ser associado aos “princípios metodológicos da interpretação de textos negros”, como propõe Henry Louis Gates, Jr. (Gates, 1989, p. 9) Sendo a divindade que abre caminhos nos interstícios entre as fronteiras, Exu é uma metáfora da conexão imaginativa que permite cruzar literaturas negras nas Américas e reconstituir percursos culturais e identitários. Moyo Okediji observou que “[a]o contrário de Prometeu, que foi pego e punido pelos deuses por roubar fogo” do Olimpo, “Exu desafia a detecção e evade-se do cativeiro e encarceramento.” (Okediji, 2013, p. 233) Quando são averiguados textos que dão testemunho da sobrevivência de sujeitos negros no Novo Mundo, malgrado todas as históricas investidas contra sua subjetividade, percebe-se que seu paradigma de produção cultural se aproxima do simbolismo de uma divindade transgressora, que se camufla e dissimula perante limites que são incapazes de lhe deter. Desacorrentadas, portanto, as literaturas contemporâneas de mulheres afrodescendentes se afirmam.
Palavras-chave: LITERATURA AFRO-AMERICANA, LITERATURA AFRO-BRASILEIRA, IDENTIDADE, MULHERES NEGRAS