As publicações recentes de textos inéditos de Carolina Maria de Jesus e o reconhecimento de seu projeto literário como referência de uma escrita afrodescendente, marginal, feminina, tem renovado as possibilidades de leitura de sua obra e de entendimento de seu lugar como autora brasileira e diaspórica. De nossa parte, cabe neste trabalho explorar possibilidades de leitura de sua narrativa autobiográfica intitulada “Favela” (2014), que retrata as primeiras experiências da autora na favela do Canindé entre 1948 e 1953 – a que seu livro Quarto de despejo (1960) deu continuidade, recobrindo o período de 1955 a 1960 na mesma favela – a partir de um diálogo com as figurações do viver-junto que Roland Barthes expôs em “Como viver junto” (2013), obra/seminário em que se propôs a pensar a literatura a partir de simulações romanescas de alguns espaços típicos – tais como o quarto solitário, a toca, o sanatório, o deserto, o prédio burguês – e de figuras ou traços dos modos de vida cotidiana intimamente relacionados a esses espaços. Essa narrativa de Carolina de Jesus parece-nos, assim, um texto-tutor fundamental para expansão da teorização e do corpus literário de Barthes na direção dos “territórios marcados pelas desigualdades sociais e distinções étnico-raciais de direitos” (BARBOSA, 2012, p. 103), fortemente atravessados pela lógica da desterritorialização, definida por Rogério Haesbaert (2014, p. 315) como “exclusão, privação e/ou precarização do território enquanto ‘recurso’ ou ‘apropriação’ (material e simbólica) indispensável à nossa participação efetiva como membros de uma sociedade”. Embora a narrativa “Favela”, de Carolina de Jesus, não tenha como mote principal o processo de remoção da Rua Antônio de Barros, mas a fixação no Canindé, ela atualiza e encena os gestos de des/reterritorialização da população migrante, negra e pobre na cidade de São Paulo do final dos anos quarenta e assim prenuncia as diversas narrativas de outros processos de remoção urbana da diáspora negra nas Américas, como a de Patrick Chamoiseau, em Texaco (1993), e de Conceição Evaristo, em Becos da Memória (2013), e as aproximações mais sistemáticas às favelas feitas pela pesquisa científica. Através de alguns traços colhidos e explicitados por Barthes (como a clausura, cabana-anticabana, escuta, esponja etc.), a tensionar a experiência comunitária entre vida coletiva e individual, espaço geográfico e espaço social, tempo e espaço, mas sobretudo ritmos coletivos e idiorritmias (ritmos pessoais), veremos Carolina de Jesus em sua busca idiorrítmica, como tentativa de, pela escrita, escapar ao modo como é posicionada em espaços subalternizados de vida e trabalho. É contra esse lugar de subalternidade que Carolina ergue seu incessante fio discursivo, idiorritmia discursiva, que permite a reconstrução de uma imagem de si mesma ou o reposicionamento de um si numa ordem espaço-temporal menos desfavorável. Aproximar as narrativas de Carolina de Jesus das figuras de discurso que Barthes extrai do viver-junto nos parece, assim, capaz de iluminar uma fala interna aos espaços populares e a seus processos de territorialização e desterritorialização, deslocando certos impasses na compreensão da obra da escritora, em sua representação conflituosa da favela, como mero espaço de anomia, da individualidade, “amontoado de indivíduos desprovidos de qualquer forma de organização interna” (VALLADARES, 2005, p. 107). É natural que, em um momento em que as escolas e as universidades brasileiras são cobradas a reconhecer e valorizar as referências negras de nossa sociedade, a obra de Carolina de Jesus fomente novos horizontes de apreciação e uma desleitura do ethos fixado, por nossas elites simbólicas, de autora contraditória, que se debatia entre pobreza e riqueza, fama e lixo, lucidez e loucura, literatura e oralidade. É o que faz hoje uma juventude negra ansiosa por rever a história e a literatura afro-brasileiras. Referências Bibliográficas BARBOSA, Jorge Luiz. Da habitação como direito ao ‘direito à morada’. In: SOUZA E SILVA Jailson; BARBOSA, Jorge Luiz; FAUSTINI, Marcus Vinicius. O novo carioca. Rio de Janeiro: Morúbula Editorial, 2012a, p. 93-107. BARTHES, Roland. Como Viver junto. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CHAMOISEAU, Patrick. Texaco. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013. HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. JESUS, Carolina Maria de. Favelas. In: JESUS, Carolina Maria de. Onde estaes felicidade? São Paulo: Me Parió Revolução, 2014. p. 39- 74. ______. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1960. VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
Palavras-chave: LITERATURA AFRO-BRASILEIRA, DIÁSPORA, DESTERRITORIALIZAÇÃO, CAROLINA MARIA DE JESUS