Traçar um paralelo, ao meu ver inédito, entre um conto de Osman Lins e algumas reflexões da pensadora alemã Hannah Arendt é a meta basilar deste empreendimento acadêmico. Do “Retábulo de Santa Joana Carolina”, traz-se a labuta da mulher nordestina consagrada literariamente por sua lida em mundo inóspito que se torna âmago da denúncia do paradoxal cenário social brasileiro. Já de Arendt, evoca-se sua análise sobre o fenômeno político no que tange a construção de um mundo comum que imortalizado por ações e palavras se constrói como obra de arte do pensar. Ora, o cerne do pensamento arendtiano fixa-se na política, sendo sua análise acerca do totalitarismo, tese que lhe permite demonstrar como ocorreu a degeneração da política e as ameaças que tal deformação causam aos pretensos governos liberais e democráticos. Neste sentido, o que está em jogo é a permanência do espaço público como espaço de manifestação da própria dignidade humana. Tem-se daí, que o termo “público” possui duas dimensões que se complementam: enquanto mundo comum o termo representa o espaço no qual os homens se relacionam, mas enquanto espaço de aparição refere-se aquilo que vem a público para ser visto e ouvido. A obra de arte requer a proteção do espaço público para que possa aparecer em um mundo comum do qual é, simultaneamente, doadora e recebedora de significado. É nesse mundo de compartilhamento de sentido que o escritor Osman Lins, artesão de palavras, confecciona sua obra, arte narrativa que torna manifesto ao mundo o que antes era só pensamento. Joana Carolina, personagem do conto de Lins é uma camponesa pobre e nordestina, cujo sofrimento se manifesta ao leitor na medida em que testemunhos de sua vida vão sendo contatos por narradores diversos. Uns, assim como a protagonista, já estão mortos, outros estão no cortejo de seu funeral. Mas a existência de Joana se imortaliza através da palavra. Joana é a lembrança de um tempo sombrio, assolado por injustiças sociais e opressão – penúria, tristeza, dor – o mundo comum está ameaçado pelo descaso de uma política obscurecida e degenerada. Não me refiro aqui, a compreensão limitada e usual da política como atividade burocratizada de organização da coisa pública com vistas a garantir a vida humana, mas do sentido originário de política indissociável do conceito de liberdade que já era evidente aos gregos antigos. Cabe, portanto, seguir os passos de Arendt, em sua desconstrução metafísica e crítica à modernidade a fim de evidenciar a recuperação da dignidade política é também a garantia de proteção ao mundo comum no qual a arte pode aparecer e que esta regeneração política se dá como um mergulho no próprio mundo, pois só assim, pode haver a possibilidade de preservação da alteridade, das perspectivas, do questionamento, para que a pluralidade humana não seja dissolvida na unidade eterna do silêncio mediante uma lei, um padrão, um mandamento, uma regra, uma ordem, uma farda, uma insígnia, uma bandeira ou uma terrificante ideia de superioridade racial.
Palavras-chave: OSMAN LINS, HANNAH ARENDT, ARTE, POLÍTICA