De tempos idos aos nossos, a construção social da mulher feita pelo gênero dominante se deu de uma forma curiosamente pendular: ou a mulher era o símbolo, a santa, ou o diabo, a vampira, a “puta”... e ainda que tenhamos no entre-lugar outras definições mais líquidas, nos extremos restam sempre a santa e a puta. Essa construção está igualmente envencilhada à questão sexual. A santa, imaculada e, ainda que partícipe de um ato sexual, o faz dentro dos limites que permite o sacramento; a vampira, scubo, rouba a energia vital através de sua predileção pelo sexo. Essa binaridade fortificou-se, segundo relata Bram Dijkstra(1986) em seu livro Idols of Perversity, no século XIX, patrocinada pela mente dualística que lhe era contemporânea. Segundo o próprio autor, a luxúria seminal a que se entregava a mulher sensual e a sua capacidade de persuasão tornavam-na uma vampira sedenta por energia vital, não apenas metaforicamente, mas também miticamente. Sarapintaram a Europa relatos sobre súcubos: novelas, romances, poemas, romances e contos afins - não por coincidência, a palavra súcubo remonta às prostitutas no antigo latim. Essa necessidade vampírica se dava, relatava a ciência, graças a perda biológica mensal de sangue e a as constantes reincidência s de anemia, que eram agravadas pela sua sujeição às necessidades da carne e que levava algumas mulheres uma sôfrega necessidade de repô-la. A vampira era assim a mensageira da catástrofe, a mulher sedenta por sexo e poder; a santa, um oásis de resistência sexual e subserviência que precisava ser constantemente vigiado contra os males dos excessos. De certa forma restou ao homem ao longo da história dialogar com o "outro" como um "mal" em potencial e não seria diferente, portanto, em relação a mulher, a quem, em uma análise mais aprofundada, Simone de Beauvoir vai referir-se como “o segundo sexo”. Na construção social patriarcal(manifestada também no mito), portanto, a mulher sucede ao homem. Ele é padrão, ela “o outro”, “o marcado”. Sendo o ser humano um animal fabulador, como propôs Umberto Eco, seus dilemas - ainda que de modo refratado - amiúde afloram em narrativas diversas. A literatura gótica(uma escrita de excessos, segundo Fred Botting), pois, não deixaria de representar o mosaico cultural que lhe era contemporâneo: o vampiro, um monstro potencialmente envencilhado às questões sexuais, é presente nas narrativas do medo por frequentemente representar o retorno daquilo que à luz da razão o ser tenta recalcar. Assim, este trabalho propõe uma análise sobre a obra gótica Carmilla, de Sheridan Le Fanu, a partir dos pressupostos de Bram Dijkstra acerca dessa binaridade e a paranoia homofóbica proposta por Ken Gelder, sobre como as influências vitorianas e o paulatino surgimento da nova mulher nela reverberam. Para isso, lançaremos mão dos estudos teóricos trazidos por Fred Botting e David Punter no tocante à literatura gótica, diálogos com algumas narrativas mitológicas basilares do ocidente, o “uncanny” proposto por Freud e as noções de abjeção pautadas por Julia Kristeva.