Affonso Romano de Sant’Anna já discutia a necessidade de revisão da historiografia literária e do corpus oficial de nossa literatura. Para ele, exercia-se então uma ideia elitista de literatura, pautada em conceitos ideológicos como “artístico” e “belo” (SANT’ANNA, 1977, p. 14). Nesse corpus oficial, somente certos tipos de obra eram privilegiados. Mesmo a origem da própria palavra “literatura” pode ser repensada, visto que um fato literário é considerado enquanto tal de acordo com a sua relação com a série ou sistema literário, e seus correspondentes extraliterários, tudo o que não é considerado literatura. Tais denominações não são estanques, e sim construídas historicamente, em um processo dinâmico. Essa construção histórica do conceito também é analisada por Raymond Williams (2000), que recupera os diferentes significados que palavras como cultura, sociedade e economia tiveram ao longo do tempo. As três palavras são formulações históricas relativamente recentes, e se não se desenvolveram paralelamente, afetaram umas às outras em algum momento, bem como influenciaram no desenvolvimento da ideia de literatura também. Em que pese a distância da produção da obra de Romano de Sant’Anna – década de 1970 – para a atualidade, ainda se percebe esse ranço – principalmente em ambiente acadêmico –, sobretudo no que concerne à vasta camada da chamada “subliteratura”: a literatura de massa e os best-sellers, a narrativa policial, a ficção científica, as literaturas oral e folclórica. A partir das discussões feitas por esses autores sobre a multiplicidade do ato de escrever e o delineamento do próprio significado de “literatura”, propomos a reconsideração das divisões entre esta e a “subliteratura”, bem como seus gêneros e variações. Consideramos neste trabalho que, como categorias construídas historicamente, devem ser repensadas a partir da superação das dicotomias como “realidade/ficção” ou “subjetivo/objetivo”. Ao invés disso, novas propostas de estudos literários devem privilegiar, como afirma Williams, as formas de sua inclusão ou exclusão, atentando para os processos históricos nas quais estas ocorreram. Destarte, propomos uma reflexão para repensar a importância do estudo de um autor que passeia entre a proto-ficção científica e a literatura fantástica no Brasil para o estudo do contexto histórico do período, bem como das discussões sobre nacionalidade e identidade brasileira. A trajetória intelectual, bem como trechos selecionados da obra literária de Gastão Cruls (1888-1959), médico carioca que atuou parte de sua vida também como escritor, e manteve contato com alguns círculos cariocas de escritores ligados ao Modernismo, servirá de ponto de partida para a reflexão sobre a historiografia literária consagrada, de suas contradições e pontos que podem ser questionados. Do mesmo modo, a reconstituição dos principais pontos de sua fortuna crítica auxiliará no debate.
Palavras-chave: MODERNISMO, HISTÓRIA LITERÁRIA, GASTÃO CRULS, IDENTIDADE NACIONAL