Babel (do conto “A biblioteca de Babel”, de Borges) é insólita não pelo fato de ser tomada como um universo – toda biblioteca o é – mas por ser tida como o universo. E também por abrigar, em suas galerias hexagonais, livros inusitados – um deles é um mero labirinto de letras mas na penúltima página se lê: Ó tempo suas pirâmides. Mas Babel desafia a lógica dos desavisados sobretudo por ser, com alguma dúvida, infinita. Leitor de Borges, Calvino (em As cidades invisíveis) reinventa Babel ao recriar Kublai Khan. Num momento da vida em que o tédio se aproxima feito abismo, a saída para o imperador reside nos relatos de Marco Polo, que não fala sua língua e descreve as cidades invisíveis do vasto império. Nessa biblioteca sem livros, formada por palavras incompreensíveis e imagens traiçoeiras, reside o desafio do imperador e sua (elegante) esperança. Mais modesta, a biblioteca do detetive Espinosa (em Perseguido, de Luiz Alfredo Garcia-Roza) vem juntar-se às de Borges e Calvino. Se a primeira não tem fim e a segunda não tem livros, esta não tem estantes – os livros, dispostos no chão em fileiras que se alternam, ora na horizontal, ora na vertical, servem eles mesmos como suportes. Biblioteca que se revolve e a si mesmo se interroga, num equilíbrio instável, como o do próprio detetive que a engendrou. Uma quarta se alinha às anteriores, com a diferença de, parecendo também ela ficção, erguer-se de fato, em Hamburgo (depois Londres), idealizada por Aby Warburg e tendo como critério de organização do acervo o da “boa vizinhança”, de modo que ao lado de um tratado de química se instala outro de alquimia, seguido de um terceiro que corrige ou suplementa o anterior. O lugar dos livros variava conforme novas percepções teóricas de Warburg, cuja biblioteca era um espelho do modo como enxergava o mundo e, nele, a arte. Diversas, as quatro são atravessadas por um fio tênue, ao qual nos agarramos para propor que toda biblioteca é um modelo único de relacionamento múltiplo, não apenas entre os livros mas entre eles e quem os organiza, e também entre eles, quem os organiza e quem os visita, e ainda entre todos eles e o espaço em que se encontram, e o tempo que os recobre de história. Modelos que sugerem novas e desafiadoras formas de relacionamento humano, um novo humanismo – tema de outro ensaio, por vir –, simulando um mundo mais surpreendente e menos intolerante.