O insólito se constitui como uma marca diferencial presente em um vasto conjunto de produções artísticas de diferentes épocas, que possuem em comum a presença de temas ou procedimentos que produzem um efeito desconcertante, ao posicionar o público diante de fenômenos que contradizem o mundo tal como o concebe. Na presente comunicação, pretendemos analisar como a vanguarda surrealista, ao propor a criação de imagens poéticas que diluíssem as fronteiras entre "real" e "irreal" e, notadamente, entre "realidade" e "sonho", teve um papel fundamental na inserção de uma imagética insólita do corpo na literatura francesa novecentista. A arte surrealista contestou as representações tradicionais da figura humana, trazendo à tona novas configurações do corpo, que o dotavam de formas insólitas. Tal tendência estética pode ser notada em muitos artistas do movimento; basta observarmos as transfigurações do corpo nos quadros de Salvador Dalí, as esculturas de corpos femininos desarticulados de Hans Bellmer, as anatomias inusitadas presentes nas pinturas de André Masson ou a série de colagens do corpo realizada por Max Ernst. Tal reconfiguração do corpo também pode ser observada no âmbito da literatura. Buscando contribuir para os estudos literários dedicados à escrita do corpo, campo que vem desenvolvendo pesquisas frutíferas sobre um tema de suma importância, a presente comunicação propõe uma análise sobre a imagética do corpo insólito na vanguarda surrealista, investigando as conjunções entre as concepções estéticas do surrealismo - a partir da leitura dos manifestos escritos por André Breton - e as figurações insólitas do corpo presentes nos contos de André Pieyre de Mandiargues, autor francês do surrealismo tardio que, na década de 1950, dedicou-se à escrita de contos oníricos. Para tal propósito, examinaremos duas narrativas insólitas do autor: "Le Pain Rouge" ("O Pão Vermelho"), conto que narra as experiências metamórficas de um homem que encolhe progressivamente até adquirir as proporções de um inseto, o que irá lhe proporcionar um acesso inusitado a prazeres nunca antes experimentados; e "Le Diamant" ("O Diamante"), conto que narra a miniaturização de uma mulher que adentra um diamante, espaço ficcional no qual inicia relações sexuais com um ser híbrido, cujo corpo é formado pela mescla entre o homem e o leão. Interessa-nos ressaltar como os textos em questão situam a dimensão corpórea das figuras de ficção no limiar entre sonho e realidade, a partir da metamorfose, fenômeno insólito que dá vivacidade à existência dos personagens, despertando sua sexualidade e abrindo novos caminhos de voluptuosidade. Pretendemos observar as ressonâncias da estética surrealista na produção literária do autor em questão, ressaltando como o surrealismo, ao destituir o corpo de sua aparência natural, buscou muni-lo de sentidos mais profundos, transformando-o na via de expressão e de realização dos desejos que se ocultam no inconsciente.
Palavras-chave: ANDRÉ PIEYRE DE MANDIARGUES, SURREALISMO, IMAGENS DO CORPO, INSÓLITO