Em um livro intitulado As If: Modern Enchantment and the Literary Prehistory of Virtual Reality, Michael Saler circunscreve a proliferação de mundos fantásticos e imaginários na literatura do fim do século XIX, nos termos de um projeto cultural maior do Ocidente: re-encantar um mundo desencantado. A lógica rigorosa com que esses mundos eram construídos, servindo-se de toda uma parafernália paratextual tomada de empréstimo dos tratados científicos, rompendo os limites entre fato e ficção, era, segundo Saler, “uma solução para o problema do desencantamento moderno”. Reinos fantásticos eram apresentados de forma realista, coesivamente estruturados, empiricamente detalhados, logicamente embasados e frequentemente acompanhados de todo um aparato acadêmico como notas de rodapé, glossarios, apendices, mapas e tabelas. Exemplos: Poe, Verne, Stevenson, Haggard. Desse modo, a partir de Jules Verne e Poe, e prosseguindo nas primeiras décadas do século XX com o otimismo norte-americano da Era das Máquinas, toda uma literatura de especulação científica, mais tarde conhecida como science fiction, foi concebida. A ficção científica, como todos sabemos, é um subgênero da literatura fantástica que comporta dentro de si várias outras subcategorias. Novos subgêneros são constituídos a partir da interpenetração de um ou mais subgêneros existentes, tornando sua classificação bastante complexa. Tomemos como exemplo o caso do steampunk: este originou-se da nostalgia do imaginário produzido pelos romances científicos do séc. XIX e da conexão entre três outros subgêneros: a história alternativa, ou ucronia, a ficção recursiva e o retrofuturismo. Histórias alternativas (também denominadas “ucronias”) caracterizam-se por criarem “pontos de divergência” em eventos históricos reais e conhecidos, e assim, num exercício de imaginação, reinventar o mundo em que ocorreram em seus aspectos sociais, geopolíticos e tecnológicos, descrevendo uma mudança em eventos do passado, que por sua vez altera o desenvolvimento da sociedade na qual estes eventos ocorreram. O retrofuturismo é a reminiscência, nostálgica ou irônica, de um futuro que nunca aconteceu, ou nas palavras da historiadora Elizabeth Guffey, se o futurismo é uma forma de antecipação amparada em prospecções científicas, o retrofuturismo é o rememoriamento desta antecipação. No entanto, outra categoria veio a se fundir com o retrofuturismo e a ucronia para criar um subproduto peculiar: a ficção recursiva, ou, como prefere Richard Saint-Gelais, a transficcionalidade, definida como a relação entre dois ou mais textos literários que compartilham elementos como personagens, locais imaginários e mundos ficcionais. Ou, sinteticamente, segundo Marie-Laure Ryan, é uma “migração de entidades ficcionais de diferentes textos”, ou de diferentes mídias. Ou ainda, "uma técnica que pode ser usada para criar histórias alternativas, geralmente voltada para o tempo passado, e que muitas vezes expressam a nostalgia poderosa de um passado em que as visões dos primórdios da literatura de ficção científica podem, de fato, se tornar realidade" (CLUTER & NICHOLS). Assim, esta comunicação pretende deter-se sobre a reciclagem da ficção fantástica dos primórdios da era científica, operada por autores contemporâneos como Kim Newman (Anno Dracula), Alan Moore (The League of Extraordinary Gentlemen) e em séries de TV como Penny Dreadful, e em como essas reciclagens terminam por constituírem-se em autênticas ucronias transficcionais.