A obra de Gide pode ser lida como uma constante vontade de sair, uma espécie de apologia ao fora: “Depois que você me ler, jogue fora esse livro – e saia. Eu gostaria que ele lhe desse vontade de sair – sair de qualquer lugar, da sua cidade, da sua família, do seu pensamento. Não leve o meu livro com você”. Essas palavras, que abrem o livro Les nourritures terrestres, podem ser lidas também como diretrizes que Gide criou para si. Uma das personagens do livro, Ménalque (uma espécie de mestre daquele que enuncia a citação anterior) reaparece numa outra narrativa de Gide, L’Immoraliste, cumprindo também a função de problematizar fronteiras pré-determinadas (em L’Immoraliste, Ménalque surge para questionar a instituição do casamento e aconselhar a personagem central a explorar a vida de formas menos estabelecidas). Uma inquietação semelhante, dirigida a vários tipos de circunscrição, pode ser apreendida em diversos aspectos da escrita de Gide: na ultrapassagem de limites narrativos convencionais (em Les Faux-Monnayeurs), do eixo autoral romântico de expressão (nas reescrituras de mitos, como Thésée), de matrizes de gênero sancionadas (L’Immoraliste, Corydon, Si le grain ne meurt), e até nos ensaios críticos, que não raro apontam uma escolha de autores que partilham com Gide a inquietude diante das formas estanques, como Montaigne ou Goethe. Seria possível imaginar, a partir daí, um deslocamento das categorias das quais se vale a crítica de Gide, categorias muitas vezes enrijecidas pelo uso e pela tradição. Desenvolverei essa questão com um comentário de um trecho de Les Faux-Monnayeurs, tendo em vista de que maneira se constrói nele um modo enunciativo que rechaça fórmulas tomadas como pressuposto por parte da crítica, mais especificamente, a ideia de “narrador”. O narrador, embora carregue consigo uma vasta tradição teórica que ampliou seus limites e explorou seus desdobramentos, não me parece suficientemente problematizado como categoria pertinente para a atividade crítica contemporânea. Através da leitura de Gide, proponho uma espécie de passeio ou deslocamento desse centro crítico em torno do qual giram muitas de nossas práticas de leitura. Para isso, tomarei como fundamento propostas de Émile Benveniste do artigo “Da subjetividade na linguagem” (em torno da enunciação como especificidade do ato de falar), e de Jacques Rancière, em “A literatura impensável” (em torno das tentativas de estabilização da literatura). Retomando Pierre Alferi: “Pensar a prosa, apenas pensar nela, encará-la, sonhá-la, é querer para a literatura – toda – o rigor de uma prosódia irregular, de uma poética mutante, e o abandono à existên¬cia profana e ao estado “vulgar” (contemporâneo) da linguagem”. Pretendo enfim sugerir caminhos de leitura em Gide – simplesmente portas que se abrem – sobre uma dupla necessidade: a desestruturação dos jargões e o reconhecimento de uma presença crítica. Trata-se da recusa à universalização no âmbito da leitura, ou mesmo da leitura como um aprendizado da não-generalização. A relação crítica é aqui o elemento desestabilizador, que, procurando não determinar o texto literário ou fazê-lo ascender à hierarquia canônica, une-se a ele num gesto de autoquestionamento e desestruturação dos próprios hábitos.