O trabalho se localiza no cruzamento entre a perspectiva contemporânea da noção de sujeito e as possibilidades de representação de si em autorretratos. Para tanto, proponho uma reflexão sobre o corpo - o corpo do artista -, o lugar do corpo no espaço, bem como seus limites (onde o corpo termina?). Para apoiar este pensamento, atravesso a análise dos autorretratos de Dieter Appelt e Kazimir Malevich, relacionando-os às noções de semelhança de Jean-Luc Nancy e Georges Didi-Huberman, bem como à noção de Resto de Jacques Lacan. Me situo, portanto, nas correntes do pensamento de um corpo-limite, no lugar onde o autorretrato não se fecha, se desassemelha, produz lugar de abertura - tanto para o singular quanto para o vasto. A escolha das obras se justifica pelo desafio a uma representação estática de si, um encerramento no corpo (fosse o corpo biológico a única possibilidade de representação de si), mas que apontam para lugares estranhos, ligações subjetivas que sugerem um olhar que perturba, desfoca, produz estranheza em sujeito possível. Os sentidos que me guiarão se apoiam exatamente nessa perspectiva da elasticidade, ou de uma forma mais figurativa: um derramamento dos corpos. Corpos que resistem à fixação em uma verdade cultural, mas que se apresentam como alargamento do campo de sentido, das áreas de sensibilidade, o que neles insiste de líquido, deslizante. As obras analisadas - de Malevich e Appelt - se apoiam no que entendo como a produção de uma falta, pela elaboração de autorretratos que se autoquestionam, não simplesmente no sentindo de oposição, mas na recusa à uma ideia rígida de autorretrato. Ambos artistas se dedicam a realização de obras que apontam para uma "ex-posição" (exposição de si como problema, lugar de tensão), inserindo nos autorretratos, cada um a seu modo, sentidos que frustram a expectativa de desvelar o sujeito. Se por um lado é uma maneira de dialogar com as crises de representação, é fundamentalmente, por outro, a busca por novos modos de relacionar-se a um "eu". O interesse do trabalho se localiza nas tensões produzidas pelo pensamento do corpo nos autorretratos propostos, relacionados à possibilidade do autorretrato na literatura. Seria possível, portanto, entender a transfiguração do rosto e do corpo no autorretrato na fotografia (como em Appelt), ou na pintura (como em Malevich), em equivalência ao autorretrato na literatura, na medida em que ambos sejam potência de recusa a uma fixidez de si - seja do corpo ou histórica? Não seria a encenação de si uma face fabricada a partir de um lugar pré-individual? Esculpir um corpo não seria, para além da encenação, manter aberta a passagem entre o individual e o impessoal? Penso autorretrato neste ponto de vista, sob este paradigma; me interessa entender os processos de corporação - nota-se corpo como o lugar de aparição de si –, dos tantos modos de criação de semelhança, passando da fotografia à pintura para mais tarde chegar à literatura, ao texto como corpo.