Encontra-se, em Borges, um reposicionamento da figura do leitor e do autor no discurso, modificando suas relações. Piglia, ao afirmar, em “O último leitor” (1979), que Borges inventa uma figura de leitor, expõe o aspecto sobre o qual este estudo debruça-se: reflexões sobre leitor e leitura. Segundo Piglia, “Borges inventa o leitor como herói a partir do espaço que se abre entre a letra e a vida” (p. 26), um entrelugar. Para a análise dessa questão, foram tomados como objeto de estudo dois contos nos quais personagens-leitores refletem sobre livro, leitor e/ou leitura, instituindo uma narrativa marcada pelo narcisismo literário (“narcissistic fiction”, termo empregado por Linda Hutcheon) voltado para a recepção, e ambos são críticas (ficcionais), discursos formulados para falar de outros discursos, sendo, portanto, a manifestação tangível de uma recepção. O primeiro, “Pierre Menard, autor del Quijote”, é escrito como um ensaio de crítica literária, refletindo, no âmbito da ficção, sobre criação, recepção e tradução. Nele, é analisada a obra de Menard, um fictício romancista e crítico francês cujo empreendimento literário de maior efeito foi seu próprio “Don Quijote”. Borges, por meio da apropriação que Menard faz do texto de Cervantes, desestabiliza todo o sistema autor-texto-leitor. Isso porque, ao analisar a obra de Menard, evidencia-se a leitura que Menard fez do “Quijote” de Cervantes e, por extensão, reflete-se sobre o papel ativo do leitor na recepção literária, atuando na produção de sentido do texto e restabelecendo, nas palavras de Jauss (“A história da literatura como provocação à teoria literária”) “a ligação entre as obras do passado e a experiência literária de hoje que o historicismo rompeu” (Ed. Ática, 1994, p. 57-58). O segundo conto, “Examen de la obra de Herbert Quain”, também é um texto crítico-ficcional. Nele, por meio do exame da obra, apresenta-se materialmente a leitura do crítico, outro personagem-leitor. Nas análises deste, tem-se uma reflexão sobre a subjetividade da leitura em entrelaçamento com a questão da memória. No entanto, trata-se também da capacidade criativa da leitura, da possibilidade de o leitor atuar sobre o texto transformando-o, tornando-o outro, próprio, como na hipótese do personagem-crítico de que, tendo sido errônea a solução desse romance policial de Quain, o leitor do livro seja mais perspicaz que o detetive — isso retoma o ponto de discussão sobre apropriação na leitura considerado no primeiro conto. Outro modo de perceber esses textos, porquanto espaços de articulação “entre” ficção e reflexões críticas e teóricas, é pelo viés do conceito de “entrelugar” desenvolvido por Bhabha (“O local da cultura”, Ed. UFMG, 2010), sendo reconhecidos, portanto, como um espaço plural e fragmentado, marcado por descentramento e heterogeneidade, capaz de comportar até o contraditório. Desse modo, essas narrativas metaliterárias “não são nem o Um [...] nem o Outro [...] mas algo a mais, que contesta os termos e territórios de ambos” (p. 54-55); são um “entrelugar” que, pela “metatécnica”, revela novas formas de compreender e interpretar a recepção de textos literários.
Palavras-chave: PERSONAGEM-LEITOR, LEITOR, METALITERATURA, AUTOR