ANE BEATRIZ DOS SANTOS DUAILIBE, MARIA IRANILDE ALMEIDA COSTA
Vive-se um tempo em que predomina o interesse pela intimidade alheia. Na mídia televisiva, por exemplo, há um aumento da audiência à reality’s shows, em um processo de espetacularização da intimidade jamais visto. A realidade, muitas vezes encenada e relativizada, recebe cada vez mais a atenção do público. Esse interesse pelo outro e por sua vida, também chega a Literatura, crescendo a quantidade de publicações autobiográficas, de cartas editadas, memórias e entrevistas. Neste contexto, surge um novo gênero, que tornou-se uma das principais modalidades literárias da contemporaneidade: a autoficção. O termo autofiction tem origem francesa, criado pelo professor e escritor Serge Doubrovsky, ao publicar o conceito de autoficção na capa do seu romance Fils, em 1977. Objetivava exemplificar, na prática, o que viria a ser um romance autoficcional, diferenciando-o dos romances autobiográficos, a partir de estudos do seu contemporâneo Philippe Lejeune. Desde o surgimento do conceito, há inúmeras discussões no cenário crítico e literário sobre a autoficção, como por exemplo, se esta realmente diferencia-se da escrita autobiográfica; se deve ser lida como romance ou é apenas uma recapitulação histórica do autor, que antes “morto” pelos estruturalistas e formalistas, retorna à Literatura. Atualmente, percebe-se um retorno do autor não apenas como a origem e explicação da obra, mas como um personagem do espaço midiático, cada vez mais presentes em programas de televisão, palestras, feiras e lançamentos de livros. A imagem de escritores das gerações anteriores não alcançava o grande público, como, por exemplo, a de Ricardo Lísias, que publicou o romance autoficcional Divórcio (2013), causando discussões e polêmicas, por tratar de um trauma recente de sua vida: seu casamento de quatro meses foi arruinado pelas confissões escritas, em um diário, por sua cônjuge. Após a separação, a então ex-esposa tentou embargar a publicação do livro, ameaçando processá-lo judicialmente, aspecto que alavancou as vendas do livro. O conteúdo do romance é forte, cruel e impactante. O narrador, autor e personagem, que possuem uma identidade onomástica, não poupa o leitor de nenhum detalhe sórdido, tornando-se, por vezes nervoso e agressivo. Sua estrutura é híbrida, na qual se intercala partes datadas do diário da ex-esposa, capítulos com progressão quilométrica; troca de e-mails com o advogado da ex; e fotos de Lísias quando criança. No entanto, há uma série de elementos que confundem o leitor, como por exemplo, as contradições expostas pelo narrador, que ora afirma escrever sem nenhum vocábulo ficcional, ora corrobora, antagonicamente, que o romance é um livro de ficção em todas as suas linhas. Esse jogo de contradições é próprio da autoficção, uma dupla recepção entre a escrita autobiográfica e a ficcional. Desta feita, este estudo visa não somente conceituar as diferentes representações do gênero autoficcional e questionar-se acerca dos limites da autoficção, como também, reconhecer, a partir da obra em questão, a reconfiguração autoral traçada por Lísias, relacionando-o autoficcional com a nova demanda narrativa contemporânea.