Este trabalho centra suas discussões na representação do deslocamento peninsular fabulado nas páginas de A jangada de pedra, de José Saramago, em que Portugal e Espanha se separam de todo o resto do continente europeu, tendo sua massa territorial dirigida para as costas da América e África. Essa transformação geográfica sugere a criação de um espaço de reflexão em que rearticulações políticas, identitárias e culturais para Portugal e, em maior instância, para a Europa e para o mundo podem ser identificadas na narrativa e tomadas como alvo de debate. Nesse sentido, discussões em torno da perda da representatividade e da soberania europeias alimentam, em contrapartida, a noção de instabilidade e provisoriedade nos cenários nacional e internacional, potencializando reações de mudanças em torno de uma nova política cultural alicerçada por novos valores que possam produzir rearticulações entre Portugal/Europa, Portugal/América/África, Europa/Mundo, além de transformações internas (pequenas e contínuas) - “inner moviments” – realizadas nos interstícios do Portugal do além-mar e do Portugal-terra, as quais fomentariam em todo o continente um processo de descentramento e de mudança. Outrossim, discutir-se-á como o conceito nação-monumento, tão ricamente aplicado a Portugal e produtivo na elaboração da identidade nacional portuguesa e europeia, pode ser provocado pela obra em tela, de modo que noções como nação e identidade nacional (conceitos solidamente enraizados no continente) passam por um processo profundo de revisão no momento em que o Portugal-ilha passa a flutuar errante pelos mares. Instigado por um “grande sopro”, a Ilha descola-se do continente e produz uma movimentação espontânea em direção à desordenação cartográfica Norte-Sul, acontecimento que condiciona reformulações de antigas relações e posições de poder. Inevitavelmente, o deslocamento do continente europeu sugerido pelo romance, ao modificar os mapas e romper as fronteiras entre o Velho e o Novo Mundo, sugere discussões bastante atuais em torno da revisão da herança colonial, assunto que tem sido recorrentemente revisitado no contexto português neste início de século, mas que precisa ser ainda amadurecido e estimulado. O romance, publicado em 1986, expressa um profundo mal-estar antes e depois da movimentação da Península, não claramente identificado e nomeado pelos personagens do livro, imprimindo no texto indícios de que novos tempos viriam, quando uma crise europeia tomaria corpo décadas mais tarde e quando, sobretudo, uma crise dos valores, ideologias e política da Europa colonial ganharia maior relevo, impulsionando e sendo impulsionada por estudiosos e obras que se articulam em torno de uma política de resistência e, mais recentemente, em torno de uma política intercultural. À luz do desnudamento dos resquícios coloniais, opera-se a favor do desnaturalização e da desarticulação de uma herança que se corporifica, até os dias de hoje, em relações e participações desiguais, estacionadas sob a sombra do etnocentrismo.
Palavras-chave: POLÍTICA INTERCULTURAL, HERANÇA COLONIAL, DESLOCAMENTO, DESCENTRAMENTO