Este trabalho pretende realizar um estudo crítico de textos de dois autores libertos do Atlântico Negro, a saber, Gustavus Vassa, também conhecido como Olaudah Equiano (c.1745-1797), e Mahommah Gardo Baquaqua (c.1824-?). A análise da inscrição textual de uma identidade narrativa múltipla, relacional e transitória em suas narrativas autobiográficas de emancipação permite questionar a aplicabilidade da noção de autobiografia como relato unificador da própria vida (Phillipe Lejeune), ao mesmo tempo em que representa uma configuração bastante especial das chamadas “escritas de si” (Michel Foucault). A inscrição textual de indivíduos cujo processo de formação identitária se dá, por um lado, na maleabilidade das fronteiras do espaço transatlântico e, por outro, sob as regras dessubjetivadoras do escravismo moderno, revela a genealogia de um projeto de reconstituição e emancipação do “eu” dilacerado pelo trauma da escravização e da subsequente travessia forçada do Atlântico. Gustavus Vassa, cujo nome de nascimento é Olaudah Equiano, carrega o dilaceramento identitário no nome que lhe foi imposto por um de seus senhores como uma homenagem irônica ao rei Gustavo I (1496-1560), famoso por libertar o povo sueco da tirania e instaurar o protestantismo como religião oficial. Ao escrever sua narrativa, porém, Vassa resgata o nome africano juntamente ao relato de sua infância em liberdade no povoado de Eboe. Publicada em 1789 sob o título de The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano; or, Gustavus Vassa the African, a obra explicita a ambiguidade indecidível entre ao menos duas identidades narrativas: a da testemunha exemplar dos horrores do tráfico transatlântico e a do cidadão inglês bem-sucedido economicamente, convertido ao cristianismo e defensor de ideais abolicionistas. Já em Mahommah G. Baquaqua, a ambiguidade é inaugurada na própria gênese textual, uma vez que o relato, narrado em inglês por um autor poliglota, trazido como escravo da costa africana para o Brasil e liberto nos Estados Unidos, sofre a mediação problemática de Samuel Moore, supostamente um editor religioso abolicionista interessado em ajudá-lo a concretizar seu sonho de retornar à África. O embate silencioso entre Baquaqua e Moore pela autoria do texto permite reler a dualidade expressa na narrativa de Olaudah Equiano/Gustavus Vassa e notar a multiplicação, em ambos os casos, de máscaras identitárias assumidas e negociadas ao longo da vida narrada, em busca de emancipação. Respeitando a especificidade contextual e do regime de escrita de cada texto, o trabalho se propõe à leitura conjunta dos dois relatos com o objetivo de colaborar para o mapeamento genealógico de uma formação discursiva antiescravista africana em diáspora no Atlântico Negro. Buscaremos, ainda, levantar hipóteses quanto à vasta apropriação de recursos e formas literárias nos dois textos, que vão desde variações consagradas do gênero autobiográfico à ironia como procedimento, passando pela citação direta de textos literários canônicos e pelo emprego da versificação poética.
Palavras-chave: MAHOMMAH GARDO BAQUAQUA, OLAUDAH EQUIANO, GUSTAVUS VASSA, ATLÂNTICO NEGRO