A crítica especializada no estudo da literatura de testemunho, especificamente sobre a Shoah, quase em uníssono, entende a fragmentação, a quebra no discurso, ou a afasia, característica inerente a esses textos, como um limite, uma espécie de pane na narrativa. Em É isto um homem?, de Primo Levi, inúmeras vezes, o leitor se depara com a impotência da escrita, da fugacidade da memória, do texto que não vem. No entanto, de forma lírica e potencialmente poética, o texto, a partir de uma lista ou enumeração, configura-se como um constelação de infinitos significados. Numa noite, no Campo, quando anteviam a morte, os prisioneiros rezavam, embebedaram, mergulharam em nefanda e derradeira paixão. Essa lista de verbos expõe, no testemunho, com crueza, a véspera dos “homens que sabem que vão morrer”. Dessa lista anônima de prisioneiros e sua condição diante da morte, destacam-se as mães que prepararam provisões, dão banho nas crianças, arrumam as malas, lavam as roupas, penduram para secar; depois, lista dentro de lista, o narrador arrola fraldas, brinquedos, travesseiros. Essas listas, suas inscrições, desdobramentos e implicações parecem ser redimensionadas no texto ficcional. Esta comunicação objetiva refletir sobre como esse tipo específico de rememoração aparece em alguns romances contemporâneos. Será analisada a estratégia de construção textual em que listas e enumerações, o rol da coisas, afinal, constitui-se de “pequenas coisas necessárias”, como queria Levi. A ficção que simula o relato dos testemunhos, delineia-se, assim, como um espaço privilegiado em que a catástrofe pode ser rememorada e seus impactos reelaborados, redefinidos e multidimensionados. Obsessões de David Dodge e Umberto Eco, as listas apontam para uma tentativa de organização, do mundo, da memória, no entanto, o seu potencial expressivo que aflora na ficção, “devora tudo o que encontra pela frente” e pode apresentar-se, também, a partir de uma extrapolação de limites, uma vertigem. A vertigem das listas exibe elencos, catálogos, enumerações. O romance Ver: amor, de David Grossman, publicado no Brasil em 1995, por exemplo, oferece ao leitor um texto em que essas questões podem ser analisadas de forma paradigmático. O livro, que se divide em quatro partes: “Momik”, “Bruno”, “Vasserman” e “A enciclopédia completa da vida de Kazik”, ficcionaliza uma tentativa de entendimento do que os estudiosos chamam de “experiência limite”, a Shoah. Todas essas partes, apresentam uma série de listas que põem em relevo a enumeração como uma estratégia importante nesse tipo de ficção. O recurso de um texto que se organiza a partir de listas, de verbetes, sinalizaria para uma forma que, em princípio, poderia ostentar a tentação de alcançar todo o saber possível sobre a Shoah. No entanto, em Grossman, o verbete não alcança seu objeto de conhecimento pleno, como queriam as ideias iluministas dos enciclopedistas do século 18. Ao contrário, a estratégia de instrução de consulta a um verbete, a um fragmento do texto, portanto, parece colocar em jogo, uma “lista” e uma “enciclopédia intertextual”, ou o que poderíamos chamar de “um arquivo aberto” em que cada item se torna não o limite, mas a possibilidade que os fragmentos possam deixar confluir inúmeros sentidos que podem ser acessados pelo leitor. Essa capacidade do verbete ou do fragmento de se apresentar entre exatidão e multiplicidade, como queria Italo Calvino, na ficção contemporânea sobre a Shoah é a questão a ser analisada nesta comunicação. O texto ficcional que, muitas vezes, simula o discurso do sobrevivente, exige uma aproximação literária, de análise do texto como ficção, e de outras áreas do conhecimento, como da filosofia, a partir de sua reflexão sobre a catástrofe; da história, com sua abordagem que privilegiaria os fatos e a narratividade; da religião, com o aporte espiritual que essa dimensão dá a ideia da Shoah; da geografia, com sua noção de espaço em relação como o falante e o discurso, criando, por assim dizer, uma abordagem que evidencia “zonas de indefinição”, não pelo limite da linguagem, inscrição no território da ficção, e que depende do arquivo de remissões, de leituras, de imagens e textos do escritor e do leitor.