O trabalho pretende investigar como se opera a relação entre ciência e literatura em O sistema periódico, do escritor e químico italiano Primo Levi. O livro foi publicado em 1975, possuiu 21 capítulos e cada um deles é intitulado com o nome de um elemento da Tabela Periódica de Mendeleev. Além de ser um apanhado de elementos químicos, apresenta-se, também, como uma coleção de relatos da vida do escritor, alguns de caráter mais ensaístico, outros de caráter mais narrativo e memorialístico. A experiência como químico e o conhecimento da ciência perpassam todo o livro, que se vale do modelo da enciclopédia para explorar as memórias fragmentárias de Levi: a infância, a formação como químico, as amizades, o crescimento do movimento fascista, a vida na clandestinidade, a prisão em Auschwitz, o regresso à Itália, a volta aos laboratórios. Diferentemente da aspiração que moveu muitos dos enciclopedistas, o narrador de Levi não pretende alcançar a totalidade; o gênero verbete, tão explorado na obra, não faz mais que confirmar o caráter lacunar e residual das lembranças do escritor. O gênero científico escolhido por Levi é também um sistema e se aproxima de outros modelos de classificação, como a enciclopédia, a coleção, o dicionário, o inventário, a lista, na medida em que ordena informações e unifica conhecimentos. Essa ordenação, contudo, está longe de ser encerrada num modelo completo e suficiente, em qualquer desses sistemas. É por isso que tais modelos servem muito bem à literatura, que não aspira à totalidade e, em muitos casos, busca desconstruir os modelos científicos do conhecimento. Ao escolher o verbete como estrutura de sua narrativa, Levi acaba por assumir o status fragmentário das memórias que deseja contar, corroborando a argumentação de Italo Calvino sobre a obstinação enciclopédica, que “corresponde à necessidade de manter juntas, em um equilíbrio continuamente posto em dúvida, as aquisições heterogêneas e centrífugas que constituem o tesouro da nossa duvidosa sabedoria” (2009). A química, para Levi, vai além do exercício de um ofício; ela se mostra intrínseca ao homem que precisou enfrentar os horrores da guerra e escrever suas memórias. Em O sistema periodico, Levi propõe uma fricção entre dois saberes, a química e a literatura, que, ao se apresentarem juntos, como em uma enciclopédia, mostram sua fragilidade enquanto saberes e ao mesmo tempo seu poder de transformação; são postos em dúvida, questionados em seu recôndito disciplinar para dar lugar à memória fragmentada de um sobrevivente de Auschwitz.
Palavras-chave: CIÊNCIA, LITERATURA, MEMÓRIA, PRIMO LEVI